Livro Eletrônico: Espírito Santo

 

 

Espírito Santo

luca mac doiss

 

    Notas do autor:

     Qualquer semelhança com fatos e pessoas é mera coincidência.

     Este conto é uma ficção, não tem propósito religioso, nem filosófico.

 

                                         lucamacdoiss@gmail.com

 

Capítulos: 1 a 3
Capítulos: 4 a 6
Capítulos: 7 a 9
Capítulos: 10 a 12
Capítulo: 13 a 15


1

 

 

1980. Dezembro. Universidade de São Paulo. Escola Politécnica. Departamento de Engenharia Naval. Último dia de aulas do ano. Onze horas da manhã. Um estudante entra no prédio da escola.

 

 

 

— E aí, Caipira! Fechou tudo? — perguntou um outro estudante, que estava saindo do prédio e se encontrou com o colega no corredor.

— Tranqüilo, estou de férias. E você, Douglas? — Anderson, aluno do quarto ano de engenharia naval, o Caipira, respondeu, sem parar, apenas diminuindo o ritmo dos passos.

— Quase, faltou Dinâmica.

— Não passou nela, ainda? — Anderson parou, a dois passos do amigo, e voltou-se para ouvir a resposta.

— Não, mas vou falar com o professor na próxima semana — respondeu Douglas, após repetir os movimentos do amigo. — Vai viajar?

— Estou indo, hoje, para minha cidade — o Anderson morava em Rancharia, pequena cidade do interior de São Paulo.

 

Anderson, jovem de estatura média, sempre passava em todas as disciplinas, estudava com afinco, quase nunca faltava às aulas. Douglas, um pouco mais alto, um metro e setenta e cinco centímetros, um pouco mais queimado de sol, um pouco menos disciplinado com as obrigações escolares, não tinha passado, pela segunda vez, em Dinâmica de Sistemas II, matéria do sexto semestre.

Despediram-se e continuaram a caminhar.

 

— Douglas, está de carro? — Douglas, então, no estacionamento, encontrou Tadeu, quase mesma estatura, moreno, densa barba e bigode negros, aparados com esmero, cabelos encaracolados. Os dois haviam cursado algumas disciplinas comuns nesse ano.

— Não!... Mas estou com o carro dos meus pais. Você pelo jeito quer carona.

— Vai passar pelo CEPEUSP? (Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo).

— Sim, deixo você na entrada.

 

Andaram até o carro de Douglas, um Passat branco, e saíram do estacionamento.

 

— Tadeu, você já está na escola há cinco anos, não?

— É, cara... o pessoal da minha turma está se formando este ano, só estão bebemorando. Mas ano que vem termino; este ano eu levei a sério, só sobraram três matérias atrasadas.

— Já está estagiando?

— Sim. Eu faço estágio há dois anos, o que fez com que eu tivesse mais dificuldade com a escola.

— Sei. Estagiar não é fácil. Mas não foi só o estágio que fez você ficar mais um tempo na faculdade. Não é?

— Verdade. Mas sou novo, tenho muito tempo para trabalhar e ganhar dinheiro. E, depois, eu tenho de viver hoje, amanhã quando estiver velhinho, para que eu vou querer ter dinheiro? Para gozar a vida?...  Se nem vou poder gozar?

 

Douglas apenas sorriu, enquanto Tadeu deu uma longa risada.

 

— Chegamos. Vai jogar bola hoje?

— Não... com essa lua, só com uma piscina para agüentar.

— Tem razão, o dia está perfeito para um mergulho, pena que tenho de ir para casa. Aqui está bom?

 

Douglas parou o carro no acostamento da avenida, sentido oposto ao centro esportivo.

 

— Está ótimo! Valeu. Obrigado pela carona.

 

Tadeu entrou no conjunto esportivo e foi direto ao vestiário, onde encontrou um outro colega da escola, da mesma turma de entrada na faculdade, que, também, cursava engenharia naval.

 

Vicky, gente boa! Como vai essa força?

— Fala, Tadeu! atrasado, meu velho.

— Hoje tive de terminar um trabalho da escola. Este ano foi de ralação, ainda bem que está acabando. E para você, como foi o ano?

— Como sempre.

 

Vicky fazia jogar bola, fazia nadar, fazia malhação, fazia procurar o que fazer com qualquer garota, mas preferia as da universidade, pelo tipo físico dele era fácil. Vicky só não fazia estudar.

Vicky tinha um metro e oitenta e dois centímetros, cabelos castanhos, tipo de rapaz que toda filha gostaria de ter como namorado, e que toda mãe queria distância... da filha. Vicky nunca havia namorado sério em toda a vida de vinte e três anos. Era um verdadeiro atleta... praticava natação desde os nove anos; jogava futebol desde que se conhecia como gente. Sentia-se bem na água ou em um campo de futebol. O curso de engenharia, ele... bem, gostava demais de barco, mas não das aulas de resistência, de física com números demais, de um a quatro. Para que tanto? Se o que interessava era pôr o barco no mar, e isso ele aprendera com os pescadores, com a prática; de motor de barco, aprendeu com o mestre Expedito, velho pescador de Mongaguá. Ele estava completando cinco anos de faculdade, mas não havia obtido aprovação em várias disciplinas. No ano que viria, cursaria, ainda, várias matérias do sétimo semestre.

 

Vicky, meu bom rapaz. Só falta você, pois eu já mudei. Não agüento mais a escola, quero terminar o curso e trabalhar.

— Eu também, Tadeu. Eu também, mas não este ano. Vou nessa. Tenho de ir à academia.

— Vai à balada esta noite?

— Vou! Vejo você lá.

— Boa! Estarei no bar da frente.

 

Vicky saiu do vestiário. Caminhava em direção ao estacionamento, onde estava o carro, um Chevette ano 77, quando...

 

Vicky, meu amor! — era a Paula, de pé ao balcão da lanchonete, a qual estava situada entre o vestiário e a saída do centro esportivo.

 

Beijaram-se na boca.

 

Paulinha, estava pensando em você.

— Acredito! — disse com sarcasmo, pois realmente não acreditava.

 

Paula era estudante do terceiro ano de biologia. Cabelos loiros, curtos, cinqüenta e cinco quilos, bem distribuídos em um metro e sessenta e cinco centímetros, freqüentadora assídua do centro esportivo, ou melhor, da piscina, aonde estava indo naquele momento.

 

— Lindo biquíni.

— Gostou? Só do biquíni?

— O recheio é muito melhor.

— Está de pé nosso encontro para segunda-feira?

— Com certeza.

— Que pena você não poder, amanhã.

— Na segunda, compenso você — beijou-a novamente e saiu.

 

A academia ficava no caminho para a casa de Vicky; fazia uns quatro anos que freqüentava a mesma academia; conhecia todo mundo; professores, funcionários e freqüentadores; e todos gostavam dele, pois tratava todas as pessoas com respeito e simplicidade. O treino do dia era peito (supino com 80 quilos) e bíceps (rosca direta com 50 quilos).   Vicky deixou a academia lá pelas cinco horas e foi para casa.

A mãe estava preparando o jantar, pois o pai normalmente chegava antes das sete horas e gostava de ter todos à mesa às oito horas para o jantar. Vicky adorava os pais e um dos programas preferido dele era conversar com o pai. Conversavam horas e horas sobre todos os assuntos.

 

— Filho, você precisa ir à igreja — o pai de Vicky não perdia a missa de domingo. “Sou católico apostólico romano”, gostava de dizer o pai, quando lhe perguntavam qual era a religião dele.

Pai, estou sem tempo. Domingo é dia de pescar, namorar, jogar bola e até de estudar... quero dizer, ler sobre barco, pesca...

 

Vicky sentia que cada dia, cada vez que aprendia mais sobre as ciências (física, química...) se tornava mais ateu. Só se lembrava de Deus nas horas de aperto, de necessidade. Nesses momentos até rezava uma Ave-Maria, um Pai-Nosso.

Por outro lado nunca conseguiu ser rebelde, pois o pai o entendia e tinha a certeza de que um dia o filho seria mais responsável; o importante, segundo o pai: Vicky era honesto, íntegro, bom amigo e humilde. Eles, pai e filho, julgavam que os anos de faculdade eram os melhores da vida e, portanto, deviam ser bem vividos, antes de começar a trabalhar, quando então ele não teria tempo livre para nada e trabalharia para pagar contas. Embora algumas vezes o pai tivesse umas recaídas; então, passava a cobrar o filho sobre resultados, sobre empenho... mas logo se rendia, Vicky era o que era.

 

— Pai, Vinícius, o jantar está pronto — a mãe chamava-os para jantar.

 

Vicky jantou, dormiu um pouco, tomou banho e saiu para a balada.

 

Encontrou-se com a turma para o esquenta no bar em frente à casa noturna. Não que ele precisasse de incentivo, de obter coragem, através da bebida, para ganhar mulher; nem que gostasse de beber mais que duas ou três doses; mas sim, porque no bar a bebida era muito mais barata que na balada, e havia os amigos. Vicky valorizava cada amizade que fazia, cada amigo que conquistava.

O Tadeu e o Bruno; aluno de física, amigo comum; estavam com um copo de vodca com suco de laranja, alternando a vez de quem bebia. Vicky pediu uma dose de vodca e uma garrafa de soda limonada, que misturou e colocou na mesa para girar.

Após mais um drinque, os três pagaram a conta dividida como irmãos, e entraram na casa noturna. No andar térreo, um pub com música ao vivo, vários casais ocupavam as mesas levemente iluminadas... mal se podia reconhecer alguém, ou distinguir uma bela de uma não tão bela mulher.

 

— Não existe mulher feia! É uma questão de uma dose a menos ou a mais — filosofou Tadeu.

 

Mas ali era o lugar para os casais ficarem conversando, namorando e bebendo. Não era o que estavam procurando, obviamente; foram ao andar superior, onde rolava música com DJs. Várias pessoas se distribuíam pelo ambiente; alguns casais, mulheres sozinhas e, também, vários concorrentes.

Na pista de dança dois casais e algumas meninas, dançando sozinhas, ocupavam todo o círculo levemente situado acima do piso e com beirais iluminados com poucas luzes verdes.

Os amigos pediram um uísque com guaraná ao garçom que os recepcionou assim que chegaram e mal tinham se acomodados a uma das mesas.

 

— Tadeu, dá um “look” naquela menina de blusa azul, dançando com aquele cara de camisa branca — Vicky referia-se a uma morena de tirar o fôlego de qualquer cidadão... corpo escultural, graciosa, cabelos castanhos escuros. Vicky ficou impressionado com a garota:

— Gostosa, muito gostosa. Pena que está acompanhada.

— Quanto maior a concorrência, melhor.

— Não seria quanto mais difícil, melhor?

— É que o acompanhante é de respeito. E, você sabe, não existe mulher...

bom, Vicky, você ganhou. Quero ver é, você ganhar a menina.

 

Meia hora depois, a menina estava dançando sozinha. Vicky não perdeu um segundo, foi até a pista e começou a dançar na frente da garota. Ela era um pouco mais baixa que ele, talvez um metro e setenta centímetros, tirando os saltos. Ele se aproximou um pouco mais, ela era mais linda de perto, olhos cor de mel, lábios carnudos, seios avolumados, sorriso de parar trânsito. “Que encanto!”, Vicky pela primeira vez na vida temeu não conseguir conquistar uma garota; pela primeira vez desejou uma mulher para ser a companheira dele... então, não desejava uma mulher para apenas uma noite, mas desejava uma vida com apenas uma mulher... ela.

 

— Sozinha? — achou coragem para a iniciativa.

— Não, com o noivo.

— Ciumento?

— Muito!

— Com razão. Distante?

— Um pouco.

— Sem juízo.

 

Ela sorriu. Ele se empolgou.

Em apenas mais um minuto, Vicky conseguiu o número do telefone, e a promessa de encontrarem-se na terça-feira seguinte na mesma casa noturna.

 

O encantamento foi recíproco; a garota, mesmo estando noiva, interessou-se pelo Vicky. O momento teve algo de mágico, pareceu que estavam destinados a se encontrarem um dia, e esse dia era aquela noite.

Existem segundos que valem por horas. Existem segundos que mudam uma vida. Existem segundos que marcam uma existência. Os segundos que fizeram aquele momento não ficariam perdidos no tempo. Aqueles segundos mudariam duas vidas.

 

Quando tinha acabado de anotar o número do telefone dela, chegou o noivo trazendo dois copos de bebida. Este os encontrou à beira da pista, ainda, conversando.

 

— Demorei? O bar estava cheio — disse o noivo, entregando um copo de bebida à garota.

— Não! Obrigada. Esse é um colega da faculdade   — disse, para aliviar as tensões, a primeira desculpa que veio à cabeça.         

 

O casal retirou-se da área de dança, com o noivo puxando-a por um dos braços. Vicky, para disfarçar, continuou a dançar, e em poucos passos, para não perder a viagem, estava com uma nova garota na frente dele, morena como a primeira, um pouco mais magra, mas também muito bonita.

 

 

 

2

 

 

Vicky acorda às oito horas da manhã, em um motel situado na Avenida das Nações Unidas, com a menina da balada, a segunda morena, ao lado. Descobre que o nome é Raquel... enquanto tomam o café-da-manhã.

 

 

 

— Raquel, prazer!

— O prazer foi meu!

 

Após levar a Raquel para o apartamento dela, foi para casa. Era sexta-feira, no sábado tinha de estar na cidade de Mongaguá. Faria a pescaria combinada, algumas semanas atrás, com o mestre Expedito.  Pescaria em alto mar. Uma das paixões  de Vicky, além  de  mergulhos em  algum  ponto da costa marítima de Ubatuba a Paranaguá,  que conhecia como ninguém.

Desceu a serra, na  noite de sexta-feira, dirigindo, sozinho; os pais não puderam ir naquele fim de semana. Vicky, no sábado, teria de acordar bem cedo; mestre Expedito saia às cinco da manhã. Acordou às quatro da manhã, comeu dois pães, bebeu um copo de leite e foi à Praia dos Milagres, de onde sairia o barco. Os pescadores que participariam da pescaria estavam com o barco e os apetrechos preparados.

 

— Mestre Expedito, meu ídolo!

— Menino Vica, meu filho!

 

Mestre Expedito adorava o Vicky, conhecia-o desde pequeno, quando ia comprar peixe, recém-pescado, com o pai e ficava fazendo perguntas, sem parar. Conforme, Vicky, ia crescendo, ficava mais interessado pelos assuntos do mar, da pesca, do barco e ia se tornando amigo do pescador. Essa seria a terceira vez que entraria no mar com os pescadores dali.

Deixou o carro no estacionamento do restaurante do senhor Domingos, também um velho conhecido. Os pratos do restaurante eram à base de peixe, camarão e outros frutos do mar, com receitas capixabas, uma vez que o senhor Domingos era de Vitória do Espírito Santo.

 

— Seu Domingos, hoje vou trazer o peixe para a sua peixada.

 

A especialidade do senhor Domingos era a moqueca, e como todo capixaba não gostava que chamassem a moqueca dele de peixada.

 

— Peixada é de paulista, a minha é a verdadeira moqueca capixaba, melhor que a baiana.

 

Ele sempre respondia assim, mas sabia que Vicky estava brincando.

 

— Vou deixar o carro aí em frente. Posso?

— Pode deixar! A gente olha para você.

— Obrigado. Tenha um bom dia.

— Vá com Deus, meu filho.

 

O barco da pesca era uma traineira, batizada de Tetis, de onze metros (trinta e seis pés), casco de madeira Ipê, motor de cem cavalos, um barco Mercedes-Benz como gostava de dizer mestre Expedito. Tinha capacidade para dez pescadores, tanque de trezentos litros, dava para ir até a África, brincava o velho pescador. Até a África não dava, mas navegava além das fronteiras marítimas. A Tetis era equipada com um instrumental completo de painel e um bom rádio... “com segurança, o velho tem de ser seguro, firme”, dizia o mestre.

Naquele dia a traineira partiu, com o mestre Expedito, outros quatro pescadores da cidade e o Vicky, na direção da Ilha Comprida e do mar de Cananéia. Partiram às cinco horas e quinze minutos. O dia estava claro; apenas algumas nuvens cinza-escuras podiam ser avistadas a sudoeste.

Mestre Expedito era um profundo conhecedor do pesqueiro (refúgio natural do pescado) da região, conhecia bem o relevo submarino, os ventos, as marés... até pela cor da água podia dizer qual era a localização do barco. Conhecia, também, as rotas dos cardumes.

Tinham navegado um pouco mais de duas horas, quando:

 

— UM CARDUME DE SARDINHA!

 

Gritou o mestre, após identificar o cardume; e, avisou a tripulação para preparem-se para o procedimento padrão, quer dizer, padrão do mestre Expedito, pois era um pouco diferente do utilizado pelos outros pescadores. Ele conseguia pescar com um só barco o que outros pescadores pescavam com dois barcos.

 

— Vamos ao cerco. Bitola, pegue o leme — continuava a comandar o mestre.

— Juca, Binho, comecem a jogar a rede — mais uma ordem.

— Andrade, fique de olho nas bóias (cortiças da rede).

Vica, o sarrico, deixe no jeito.

 

Enquanto a traineira formava o cerco ao redor do cardume, a rede, de quase trezentos metros de comprimento e trinta de altura, era lançada e fechada por baixo. As redes do mestre Expedito sempre atendiam ao padrão de malha - para não saírem arrastando tudo que encontravam, mas somente os peixes dentro do tamanho permitido. Após o fechamento, a rede foi içada para o barco, e o pescado separado e posto no porão em embalagens com gelo.

Os pescadores - como manda a lei - celebraram o resultado da pescaria, o qual afirmava a fama do mestre, com um gole na garrafa de licor de cachaça com canela, que circulou entre todos. Vicky, nesse momento, sentia-se um deles.

Mas a comemoração teve de ser interrompida, a segunda metade da garrafa ficaria para ser bebida em terra, tinham de se apressar, a hora de voltar para casa precipitou-se. As nuvens, a sudoeste, haviam se aproximado rapidamente, e, então, eram consideravelmente densas, preocupantes. O vento estava mais forte, segundo o mestre algo em torno de trinta e cinco nós, levantava o mar. As ondas começaram a aumentar de tamanho, alcançavam quase o nível do convés.

O vento ficou, ainda, mais forte. O céu, antes de três cores, azul, cinza-claro e cinza-escuro, era só cinza-escuro; o dia tinha virado noite; o vento ultrapassava cinqüenta nós; a onda na frente da traineira parecia uma muralha intransponível, quando chegava, encobria o convés. O vento aumentou ainda mais, podia-se até dizer que, então, estava com mais de oitenta nós, o barco chocava-se contra as ondas de quase dez metros de altura.

Mestre Expedito fez contato, pelo rádio, com a base de pescadores de Mongaguá, falou da tempestade que chegou repentinamente e disse que precisavam de ajuda. O operador da base informou que a tempestade, não prevista, dificultava a saída dos barcos, mas assim que as condições climáticas permitissem, enviaria ajuda.

 

A traineira era levada pelas ondas como se fosse uma maquete em uma piscina de locação cinematográfica de um filme de tragédia, só que ali os efeitos não tinham nada de especiais, eram reais, eram naturalmente assustadores. Vicky amarrou-se na escora da rede de pesca na popa do barco; O mestre Expedito que estava dentro da cabine, amarrou-se ao leme e os outros homens nos pés dos bancos da parte da frente, na proa. O barco salva-vidas, que naquela situação não era capaz de salvar ninguém, nem a si mesmo, soltou-se, e, sumiu no mar. Após mais uma onda lavar o barco, a cabine foi jogada no mar revolto, em seguida dois pescadores foram arrancados das amarras e lançados no mar. Mestre Expedito, apavorado, começou a se desamarrar para tentar salvá-los... Foi quando o mestre foi jogado no mar, por uma onda gigantesca, ainda com o leme amarrado às mãos. Vicky não pensou duas vezes, soltou-se e pulou atrás do mestre, mas não conseguia ver quase nada, a chuva agora intensa, o mar ainda mais agitado, o dia escuro, dificultavam a visão. Ele não  conseguiu  localizar  o  mestre,  nem  os  pescadores  que haviam caído na água; então, procurou pelo barco, para retornar.

O barco tinha se distanciado demais de Vicky; não conseguiria voltar, nem ser resgatado pelos outros pescadores; conseguiu se segurar em uma tábua da cabine, quando veio uma enorme onda e partiu a traineira ao meio, a qual ao ir para o fundo criou um redemoinho que puxava o jovem para baixo. Por sorte e pela distância que estava do barco, a força da água para baixo era suportável, e ele conseguiu se manter em cima da tábua, mas a onda seguinte jogou-o para cima, em seguida à queda, Vicky, empurrado para baixo, perdeu os sentidos.

 

Dois barcos de pescadores, da base de Mongaguá, zarparam ao local indicado pelo mestre Expedito, assim que a tempestade diminuiu. O mar ainda estava agitado, com ventos de mais de trinta nós, a empreitada não era aconselhável, mas os pescadores não deixariam um amigo, no mar, sem ajuda. Partiram, então, na busca dos amigos.

Com muita luta, e igual sorte, os barcos chegaram ao ponto indicado pelo mestre Expedito, porém, no local, encontraram somente destroços da traineira... nenhum sobrevivente... nenhum corpo foi encontrado.

 

 

3

 

 

Vicky acorda em uma praia. Procura, pelo corpo, algum ferimento, alguma marca... nada. Apalpa-se... nenhum osso quebrado, está inteiro. Olha para o céu, o sol está querendo nascer. Olha para os lados... reconhece o local, é a praia de Mongaguá, está a uma distância de uns quatro quilômetros do restaurante do senhor Domingos. Resolve caminhar até lá, já que se sente bem; lembra-se de mestre Expedito, dos pescadores. Procura por algum sinal na praia, algum pescador, algum destroço do barco... nada.

 

 

 

— O que aconteceu, meu amigo? — perguntou à própria imagem refletida na água, enquanto lavava o rosto.

 

“Não entendo. Como pode estar amanhecendo? Saímos com a traineira bem cedo, ficamos quase o dia todo pescando, e ainda está amanhecendo? Ou será que já é outro dia? Se sim, onde passei a noite? Será que boiando no mar, até chegar à praia?”, pensou.

Quando estava a cem metros do restaurante, procurou por, mas não avistou o Chevette. Podia ver o local onde tinha estacionado o carro, mas ele não estava lá.

“Será que o roubaram?

O senhor Domingos estava abrindo as portas do restaurante, quando Vicky chegou. O amigo ao vê-lo ficou assustado.

 

— Meu filho! É você mesmo? — disse o senhor Domingos, espantado, parecia que via um fantasma.

 

Vicky notou o espanto do amigo, mas achou normal, pois ele também estava confuso, por estar chegando sozinho, e pelo jeito, um dia depois.

 

— Você sabe do mestre Expedito e dos pescadores? — perguntou Vicky.

— Onde você estava? Pensamos que você tivesse morrido?

 

Nesse momento pensou que o mestre Expedito poderia estar vivo, tinha se salvado, junto com os outros pescadores; que só ele não havia retornado com o grupo.

 

— O mestre Expedito, ele voltou? — Vicky tinha um certo tom de esperança, de alegria na voz.

— Não, nem ele, nem nenhum dos pescadores. Os barcos que navegaram em socorro à Tetis só encontraram destroços da traineira.

— Não acharam o mestre? Nem os outros pescadores?

— Infelizmente não. E, pior, foi encontrado dois corpos, trazidos pelo mar, na praia de Itanhaém. Eram dois dos pescadores da traineira.

— Não! Não pode ser!

 

Vicky sentou-se em um dos bancos da frente do restaurante, nesse instante estava cansado, triste, desolado. Chorou por alguns minutos. Recebeu um copo de água com açúcar trazido pelo senhor Domingos, que bebeu em vários pequenos goles.

Após uns dez minutos, sentindo-se melhor, perguntou:

 

— Seu Domingos, cadê o meu carro?

— Seu pai levou, faz quatro dias.

— Não entendi! Eu o deixei aqui ontem de manhã. O senhor disse quatro... quatro dias?

— Sim, na quarta-feira passada. Ele estava muito abatido. Veio com um amigo que o trouxe de carro.

— O senhor só pode estar de gozação. Que dia é hoje?

— Domingo.

— Domingo? Então eu fiquei um dia no mar. E meu pai veio ontem, não há quatro dias.

— Do que você está falando? O acidente aconteceu há mais de uma semana.

— Que brincadeira é essa, Seu Domingos? O senhor deve ter bebido. Que dia do mês é hoje?

— Dia quinze.

— Não, não pode ser, o senhor está enganado, ontem foi dia sete.

 

O velho Domingos tinha um “jornal de ontem”, o  qual foi mostrado ao Vicky. A data estampada na primeira folha era: Sábado, 14 de dezembro de 1980.

 

— Onde você esteve durante os últimos oito dias?

— Como se salvou do acidente fatal com o barco?

 — Como apareceu na praia?

— Quem o levou até a praia?

 

Foram as perguntas do senhor Domingos, foram as perguntas dos pais, foram as perguntas dos amigos.

A missa de sétimo dia tinha sido no dia anterior, no sábado. “No domingo ele aparece são e salvo, sem nenhum arranhão”. Os pais de Vicky quase morreram de susto, depois parecia que morreriam de tanta alegria.

Vicky não conseguiu respostas para nenhuma das perguntas, não conseguiu respostas para ninguém, e o pior, nem para si mesmo.

O tempo apaga tudo, até as perguntas sem respostas, e o mais importante é que ele estava vivo, exceto pelas mortes do grande amigo, e mestre, e dos pescadores, nada havia mudado... bem, perdeu dois encontros amorosos na semana em que esteve ausente. Mas teria toda uma vida pela frente.

Em conversa com o pai e a mãe, concluíram que a  possibilidade mais forte do que teria acontecido, que seria a oficial, a que contariam a quem perguntasse, é que: ele teria sido socorrido por alguém, depois de ter aparecido na praia, desmemoriado. Após ter recobrado a memória, sozinho, na praia, voltou ao restaurante do senhor Domingos.       

Não explicava tudo, mas era a melhor explicação que podiam ter, afinal ele precisava de uma explicação, para si mesmo, para seguir em frente.

 

Passou dezembro, o Natal, a virada do ano, janeiro. Vicky, sempre pensativo, quase não saiu de casa. Pensava no mestre, nos pescadores, no acidente... Passou fevereiro, o carnaval, voltaram as aulas. Estaria de volta à velha e boa rotina: escola, piscina, quadras de futebol, academia e mulheres. “Tudo igual”, pensava, desejava a cabeça, a razão; mas o coração, a alma, dizia o contrário... ele se sentia diferente. Não sabia o que era, mas sentia que, então, não era a mesma pessoa, de antes do acidente.

 

 

 

   

4

 

 

Primeiro dia de aulas do novo ano. Vicky está assistindo a uma aula; o que não fazia há muito tempo, talvez desde outubro do ano passado, tinha até se esquecido qual fora; com certeza, é a primeira vez que assiste a uma aula na primeira semana. Ele está surpreso, está gostando da aula. O professor, o mesmo; a matéria, a segunda vez que fazia; lembra-se de não ter gostado dela quando da primeira vez.

 

 

 

              — Até a próxima. Bom dia! — disse o mestre, encerrando a primeira aula do dia.

 

Vicky ainda tentava descobrir o que havia mudado. “Seriam os colegas de classe?”, pensou. Mas essa não era a explicação, os colegas eram diferentes, mas com os colegas anteriores ele também se dava bem. Vicky era uma pessoa que: ou se gostava de primeira impressão ou se gostava após conhecê-lo, ou seja, todos gostavam dele.

Assistiu a todas as aulas da manhã. Não haveria nenhuma aula no período da tarde, então, foi à piscina do centro esportivo, onde encontrou a Paula.

 

Vicky, meu amor, quanto tempo? Por onde tem andado?

— Um bom tempo, quer dizer, bastante tempo. Estive viajando. E você, como vai?

— Bem, dá uma olhada — disse e deu um giro no próprio corpo.

— Você está ótima, Paula.

— Também viajei, estive na Europa por quase um mês.

— Mas esse bronzeado não é de Paris, nem de Madrid.

— Estive na Holanda e na Bélgica. Só frio. Muita neve. Mas, depois que voltei, fiquei no Guarujá por mais de um mês.

explicada a cor.

Ei, Vicky o que vai fazer hoje? Vamos sair à noite?

— Infelizmente, hoje não posso, tenho de fazer um trabalho de escola.

falando sério?

 

Essa foi demais. Nem o Vicky acreditou no que os ouvidos estavam a ouvir da própria boca. Ele recusou um programa com uma mulher gostosa... uma saída com a Paula, e ainda disse com convicção que estudaria naquela noite... primeiro dia de aulas.

“O que está acontecendo?”, pensou Vicky.

Despediu-se de Paula, e foi à lanchonete, onde encontrou o velho amigo Tadeu, que acabara de chegar, ainda com a mochila nas costas.

 

— Tadeu, que bom que chegou! Ponha a mão na minha testa, vê se estou com febre.

 

Tadeu, sabendo que o amigo era brincalhão, levou na gozação.

 

Vicky, que tal uma balada esta noite para comemorarmos a volta às aulas?

— Não posso.

— Não pode, por quê? Vai estudar? — disse, rindo da própria piada. Ele era, sempre, quem mais se divertia com as próprias piadas.

— Sim. Vou estudar um pouco, mas preciso dormir cedo, não quero perder a primeira aula de amanhã.

 

Tadeu não agüentou, deu uma forte risada. Pela reação, nem precisou dizer que não tinha acreditado.

 

— É verdade, Tadeu. Preciso estudar.

— É, você deve, mesmo, estar com febre.

 

 Vicky voltou para casa. Às quatro da tarde foi à academia. As atividades programadas para o dia eram alongamento e esteira. Após meia hora de alongamento, foi para a esteira. Os aparelhos ficavam no primeiro andar do prédio, em frente a uma parede de vidro com vista para a avenida. Tinha corrido quinze dos trinta minutos programados, quando observou um pai e filho pequeno, de mãos dadas esperando que o fluxo de carros parasse e permitisse que atravessassem a avenida. A cena chamou a atenção de Vicky, por eles estarem tentando atravessar fora da faixa de pedestres, quase no meio do quarteirão, em uma avenida com grande movimento de carros.

Parou de passar carros. Vicky foi distraído pelo instrutor da academia que passava uma instrução à garota da esteira ao lado. Ouviu um barulho de freada de pneus. Olhou para a avenida. Era de uma moto. O homem que queria atravessar a avenida estava ajoelhado e o menino estirado na calçada, ao  lado dele. Um jovem que ocupava a segunda esteira à direita da de Vicky, explicou o acidente. Quando o pai e o filho começavam a atravessar, a moto apareceu subitamente, do nada - o que é uma característica das motos, os pedestres não percebem a velocidade e o tempo de aproximação de uma moto. O pai, para evitar o atropelamento, puxou o menino com vigor; o menino, jogado ao chão, bateu a nuca na guia da calçada (meio-fio).

Algumas pessoas foram chegando para perto dos dois. Vicky viu um homem trajando roupa branca se aproximando com pressa, era o médico da academia.

O menino estava inconsciente; o médico não viu nenhum sinal de sangue, o que parecia bom, então, abaixou-se, encostou a face no rosto do menino para sentir a respiração e, em seguida, pôs a mão no pescoço do menino, para verificar a pulsação. Após alguns segundos, que pareceram uma eternidade, o médico balançou a cabeça negativamente. O pai desesperou-se, saiu para o  lado. O médico pediu a uma das pessoas, que ali estavam, telefonar da academia para chamar uma ambulância.

Vicky, instintivamente, pulou da esteira, desceu as escadas como se não tivesse degraus, chegou à rua.

 

— Meu filho, meu filho não está respirando — falava o pai sem saber o que fazer, sem saber o que dizer, sem acreditar no que havia acontecido.

 

As pessoas, curiosas, preocupadas, sentidas, tinham formado um meio círculo em volta do menino, deitado na calçada, ainda na mesma posição... ordens do médico.

Vicky aproximou-se; abaixou-se; percebeu que o menino não respirava.

Vicky, instintivamente, pôs a mão esquerda na testa do garoto estendido no chão.

Então...

Vicky sentiu uma energia confortante atravessando o corpo, em seguida viu uma luz se formando em torno dele e da criança.

 

— Pai, cadê você? — disse o menino, assim que abriu os olhos.

 

O menino tinha voltado a si, estava tranqüilo, mas vendo o grupo de pessoas ao redor sentiu medo. Mas estava calmo, sentia que aquele homem sorrindo para ele era do bem.

 

— Pai! Cadê você?

 

O pai sentado a  metros dali, chorando, falando sozinho, não percebeu que o pai sendo chamado era ele. Pensou, se é que ele conseguiu pensar, no que restava de  consciência, que algum outro pai relapso, como ele, tinha deixado o filho se perder na rua.

 

— Pai, pai — o menino estava atrás do pai, de pé. Ele estava ali chamando o pai como se nada tivesse acontecido.

— Pai, você está bem? Por que está chorando?

 

O menino não se lembrava do acontecido, não tinha consciência do ocorrido, apenas estava assustado com a quantidade de pessoas, admiradas, olhando para ele.

O pai abraçou o filho como se estivesse abraçando-o pela primeira vez; como se estivesse recebendo o filho recém-nascido das mãos da enfermeira, e, isso tinha acontecido havia meses de cinco anos.

Apertou, apalpou  cada  osso,  cada  nervo, cada fio de cabelo do filho. Então, teve a certeza... o filho estava vivo. O pai, após recuperar a lucidez, perguntou como ele havia se levantado.

 

— Foi aquele moço que me ajudou — voltou-se, procurou o moço forte, simpático que lhe passou tranqüilidade... Não achou.

 

Vicky havia retornado à academia, faltava mais quinze minutos de esteira para completar a carga diária de saúde. Os freqüentadores e os funcionários da academia, que assistiram à cena não podiam dimensionar o que se passou ali na frente do prédio.

O médico ainda estava sem entender nada, quando entrou na academia, nem conseguia explicar, a quem perguntava, como o menino se levantou e saiu andando, só afirmava que o menino não apresentava nenhum sinal de vida, quando ele o examinou. Também não tinha visto Vicky se aproximar do menino; havia percebido que o garoto estava vivo quando nos braços do pai.

 

No andar superior, na ala das esteiras.

 

Vicky, o que você fez para o menino se levantar? Daqui de cima parecia que ele estava morto — perguntou, o  jovem que corria em uma das esteiras.

 

No primeiro andar não era possível ouvir nenhum som, nenhuma palavra que vinha da calçada. Assim, os que ali se exercitavam não podiam realizar, entender, o que realmente havia ocorrido. Vicky, também, não ajudava com as explicações.

 

— Nada, o menino estava só desacordado. Voltou a si sozinho — respondeu Vicky. — Logo após a forte luz ter surgido do nada e nos envolver.

— Forte luz? Do que você está falando?

— Vocês não viram a luz que nos envolveu... o menino e eu?

— Luz? Não! — responderam os amigos da academia.

 

Voltou para casa. Preparou o habitual copo de proteína com leite desnatado, como fazia todo dia de academia. Bebeu de um só gole, como de costume.

À noite, no jantar, comentou o fato com os pais.

 

— O menino estava desmaiado? — perguntou a mãe, interrompendo o relato do filho, na parte em que ele tinha voltado à academia, e essa era a segunda vez que contava o ocorrido.

— Agora não sei mais nada. Mas no momento, senti que o menino estava morto.

— Se estivesse morto, não se levantaria — disse o pai.

— Eu sei. Mas inexplicavelmente o menino saiu andando.

— E o médico, o que disse o médico?

— Eu não falei com o médico, mas algumas pessoas disseram que ele afirmava que o menino estava morto, quando foi examinado, logo após o acidente.

— Impossível! Seria um milagre de Deus — disse o pai.

— É o que eu também acho — disse Vicky. — Impossível!

 

Talvez se os pais tivessem visto o acidente, e o que se desenrolou depois, perceberiam a grandiosidade do feito do filho. Como não testemunharam o fato, concluíram que o menino estava só desmaiado.

 

Vicky estudou um pouco. Foi dormir. Sonhou.

Vicky, no sonho, estava em uma pequena praia. Era uma praia encravada entre dois altos penhascos, intransponíveis. O mar, que a banhava, era calmo, com água transparente, cor verde-esmeralda. Na água, existiam algumas belas formações rochosas que formavam uma piscina natural em um dos cantos da praia. Havia uma pequena vila com uma única rua, e no fundo a Serra do Mar... inconfundível, para ele, era a Serra do Mar.

 

Acordou às seis horas da manhã, café na mesa... Filho satisfeito, mãe satisfeita... Foi à escola. No carro, ao volante, lembrou-se do sonho, parecia real, parecia que conhecia a praia, mas não sabia especificar qual era. Ele que conhecia uma grande quantidade de praias, desde o Ceará, passando por Fernando de Noronha, até o Rio Grande do Sul, não conseguia dizer qual era aquela. Talvez pela beleza fosse a praia dos sonhos dele, quer dizer a praia ideal para ele, uma mistura das mais bonitas do Brasil. 

Ouviu uma sirene, era de um carro de bombeiros, abriu passagem, fechou o semáforo. O carro de bombeiros parou ao lado, forçado a esperar o sinal ficar verde e os carros que bloqueavam o caminho se moverem; pelas luzes e sirene, os homens estavam se dirigindo para fazer algum salvamento. Notou que um dos bombeiros, sentado na parte de trás do caminhão, estava bem ao lado; os olhares cruzaram-se... Vicky sentiu que a pessoa não era estranha a ele, conhecia-o de algum lugar. O bombeiro levantou levemente o capacete, como a cumprimentar, e sorriu para ele. Luz Verde. O caminhão partiu, ultrapassando os veículos que, então, abriram passagem.

Vicky ficou algum tempo tentando se lembrar de onde conhecia o bombeiro. Não conseguiu.

 

Após dez minutos, quando estava em cima de uma das pontes sobre o Rio Pinheiros, o trânsito parou, um grande congestionamento formou-se; então, descobriu o motivo da pressa dos bombeiros... um enorme incêndio em um conjunto de barracos que ficava bem ao lado da Marginal do Pinheiros.

Vicky, como o trânsito não andava, desceu do carro, ele e mais uma dezena de pessoas, e foi até a beirada da ponte observar o incêndio, que se alastrava rapidamente por conta do vento, por conta da madeira, por conta da enorme quantidade, e proximidade, dos barracos. Ele estava a uns cem metros da entrada do conjunto, podia sentir o forte calor, podia sentir o desespero das pessoas, podia ver o trabalho dos bombeiros, que se entregavam, que se desdobravam ante a precariedade das condições para um trabalho eficiente. O fogo tinha consumido quase tudo, por sorte a maioria das pessoas havia saído para trabalhar, quando o incêndio começou, facilitando, assim, a fuga dos que estavam no conjunto de barracos.

De repente uma mulher, uma mãe gritava, desesperada, o bebê dela, com menos de um ano de idade, tinha ficado em um dos barracos. Vizinhos seguravam-na, para evitar que ela entrasse no conjunto... Ninguém conseguiria entrar lá e voltar vivo.

O bombeiro que Vicky havia visto, quando estava parado esperando o semáforo abrir, perguntou à mulher qual era a casa dela; e, entrou sozinho no meio dos barracos em fogo, protegido somente pela vestimenta de segurança e jatos d’água jogados sobre ele.

Os minutos passavam; as pessoas em cima da ponte, os carros que não deixavam um metro quadrado de área descoberto nas avenidas,  os moradores do conjunto postados na entrada... o mundo todo, imóvel, em suspense... eis que surgiu o bombeiro do meio do fogo, envolto na fumaça, totalmente chamuscado, mas não parecia estar trazendo a criança. A mãe desesperou-se ainda mais. Quando ele chegou perto da mulher, abriu o zíper do casaco e... o bebê... o bebê estava escondido embaixo da pesada vestimenta, protegido do fogo, protegido da fumaça, protegido do mal, ao lado do coração daquele homem. O bravo bombeiro entregou o bebê nas mãos da mãe, e... voltou ao trabalho, desaparecendo entre os outros bombeiros.

 

Vicky voltou ao  carro, pois o trânsito começava a ser liberado, e,  não  viu  o  abraço dos outros bombeiros no amigo, nem o beijo, no rosto, do comandante no homem, nem, isso pela distância seria impossível, as duas lágrimas que escorreram pelo rosto do bombeiro.

 

Nessa noite Vicky sonhou novamente com a praia. Dessa vez ele saiu da praia e caminhou até uma vila.

A vila tinha uma única rua, com casas dos dois lados. A rua, perpendicular ao mar, começava praticamente na praia, a primeira casa estava a pouco mais de vinte metros da praia. Parecia uma vila de pescadores, só que as casas eram maiores e construídas em alvenaria. Casas bem cuidadas. A vila ficava em um vale, era cercada por montanhas que terminavam nos penhascos. O vale tinha aproximadamente cem metros de largura. A rua de dez metros de largura, de terra, parecia não ter fim.

Vicky, no sonho, lembrou-se de ver as horas, procurou pelo relógio de pulso, não achou; notou que estava vestido com bermuda e camiseta, a mesma roupa que usava no dia em que saiu para pescar com o mestre Expedito; pela posição do sol, estimou que eram três horas da tarde.

Entrou na primeira casa. Não encontrou ninguém, estava vazia, contudo a casa tinha todos os móveis... sofá, mesa, cadeiras... Não havia luz elétrica; candelabros espalhavam-se por toda a casa. Saiu da casa. As ruas, também, não tinham luz elétrica; existiam lampiões posicionados em frente das casas.

 

— Se esta é uma vila de pescadores, não haver homens durante o dia pode ser normal, mas e as mulheres, onde estão? — perguntava a si mesmo Vicky, no sonho.

— As mulheres provavelmente moram em alguma cidade vizinha. Os homens usam a vila para os dias de pesca. E devem ir ao encontro das mulheres de quando em quando — respondia a si mesmo, Vicky, no sonho.

 

Entrou na segunda casa, do mesmo modo não havia ninguém, a casa também organizada, com todos os móveis. Com fome, cansado... mais cansado do que com fome, achou água em um pote de barro na cozinha, bebeu. Comeu um pedaço de pão que encontrou em cima da mesa. Olhou para o sofá, o sofá olhou para ele, não resistiu, sentou-se, deitou-se e adormeceu, caiu em sono profundo, parecia que não dormia havia vários dias.

Acordou, ainda no sonho. Estava escuro, tinha anoitecido, escutou um barulho, virou o rosto, um casal estava sentado nas poltronas em frente ao sofá de três lugares. O homem, trajando terno e gravata, segurava uma xícara em das mãos e o pires na outra; a mulher, de vestido de algodão indo até o meio da perna, tricotava. O casal sorriu para ele, fazendo-o sentir que era bem-vindo. Adormeceu novamente, acordou no outro dia, procurou pelo casal, não achou, não encontrou ninguém, encontrou um bilhete: “fomos à cidade grande, sinta-se à vontade”.

 

O sonho continuou, era dia e ele tentava sair da vila. Andou até o fim da rua. Ela terminou ao pé da serra com uma curva à direita. Fez a curva e na frente dele apareceu, novamente, a serra, com mais uma curva à direita. “Estranho”, pensou, no sonho. “Olhando da vila não tinha notado a curva no final da rua, apenas que ela parecia não ter fim”. Ao fazer a segunda curva, espantou-se, o mar apresentou-se na frente dele e a rua terminou em uma praia. A praia era familiar; olhou para trás, viu a vila, viu a rua, a única da vila. Era a mesma praia, com os mesmos penhascos, com o mesmo mar.

Vicky decidiu, então, verificar o que havia acontecido, se tinha errado em algum ponto do percurso. Saiu da praia; caminhou até o fim da rua; virou à direita; virou à direita; e, voltou à praia... a mesma praia.

 

Vicky acordou, às seis horas da manhã; café na mesa, a mãe sempre preparava o desjejum dele, pão com queijo branco e leite com chocolate; alimentado, foi à escola.

No caminho, enquanto dirigia, pensou no sonho. “Parecia ser tão real, mesmo sendo surreal”. Resolveu esquecer. “Afinal toda pessoa sonha.”

 

 

5

 

 

Almoço na universidade. Restaurante da Faculdade de Física. Vicky está sentado à mesa, percebe uma garota na fila para pegar a comida, olhando para ele; ela lhe parece familiar.

 

 

 

— Esse lugar está livre?

 

A moça, após alguns minutos, então com a bandeja na mão, perguntava se podia sentar em um dos oito lugares à mesa, dois dos quais ocupados por Vicky e um amigo da escola.

 

— Por favor — respondeu Vicky.

 

A moça de vez em vez olhava para o Vicky, que do outro lado da mesa também não se furtava de olhar para ela, de quando em quando. Os olhares escondidos, interceptados proporcionavam disfarces não convincentes, então, após um tempo, não maior que três minutos, a moça tomou a iniciativa.

 

— Você não é o cara da balada, que ficou de me ligar para nos encontrarmos?

— Nossa! Agora estou a reconhecendo. É você mesma?

— Meu nome é Trícia.

— Prazer, sou Vicky.

 

Vicky pediu desculpas e explicou o que tinha acontecido, ou melhor, a explicação que passou a ser a oficial. Trícia estudava pedagogia, último ano. E costumava almoçar naquele restaurante.

Trícia não contou  que não estava mais noiva. Muito menos que tinha terminado o noivado após o encontro com Vicky, pois sentira naquela noite que não amava o noivo, não o suficiente para se casarem...

Acabaram de almoçar e saíram juntos do restaurante em direção ao estacionamento.

Quando foram se despedir, dando as mãos para o cumprimento, uma vez que não eram, ainda, íntimos o suficiente para trocarem beijinhos na face, algo mágico aconteceu. Ao se tocarem, olhando um nos olhos do outro, sentiram um calor intenso, por todo o corpo. Eles tiveram uma certeza, ninguém precisava dizer uma só palavra, era muito forte o que sentiam um pelo outro, e não era atração sexual, era algo maior.

Trocaram os números de telefone e combinaram almoçar no outro dia no mesmo lugar.

Assim foram se encontrando quase todos os dias.

 

— Você rompeu o noivado!?Vicky estava surpreso, positivamente, a notícia o deixou contente. — Então está livre?

— Livre sempre fui. Agora estou sem noivo, sem namorado.

 

Naquele dia aconteceu o primeiro beijo entre os dois. Sentiram novamente um calor envolvente que invadia o corpo, dessa vez mais forte que o do primeiro toque de mão. Era a confirmação de que eles se complementavam, de que eram feitos um para o outro.

 

Abril. Tinha se passado mais de um mês do início das aulas, Vicky estava indo ao litoral, pela primeira vez após o acidente. Dessa vez estava indo com o pai, a mãe e a Trícia. Ele pensou algumas vezes, antes dessa, de ir até Mongaguá, mas sozinho não teve coragem. Eles pararam em um restaurante, na Rodovia dos Imigrantes, para um café, velho costume da família. O pai acreditava que a parada para o café deixava a viagem mais agradável, fazia dela parte do passeio, e, havia, ainda, o pão de semolina, para o café-da-manhã.

Quando estavam saindo do restaurante, notaram um agrupamento de pessoas no estacionamento, e no chão, deitado, um senhor de meia idade. Não puderam evitar, pois as pessoas estavam entre eles e o carro estacionado, nem conseguiriam, pois se fosse necessário teriam o dever, a satisfação, de prestar alguma ajuda. O homem havia sofrido uma parada cardíaca; um médico, que tinha, também, parado no restaurante, estava tentando reanimá-lo com massagem e respiração artificial. Mas o caso estava complicado, o senhor permanecia desacordado. O médico levantou-se, pediu espaço para o homem, e ouviu de uma outra pessoa, que se aproximou, que a ambulância estaria chegando em breve.

Vicky lembrou-se do menino em frente à academia, então, abaixou-se, pôs a mão esquerda na testa do homem... Nada aconteceu. Naquele momento, decepcionado, tentou novamente, nada, nenhuma energia positiva, nenhuma luz. O homem continuava desacordado. Levantou-se, triste por não ter conseguido ajudá-lo.

Nesse momento uma ambulância chegou e, rapidamente, o homem foi levado para dentro do veículo equipado com aparelhos para atendimentos de emergência.

 

— Por favor, há, aqui, algum parente do senhor socorrido? — perguntou o motorista da ambulância, enquanto dois enfermeiros faziam o procedimento padrão.

— Eu! — respondeu um senhor de mais idade que o homem atendido.

— O senhor é o pai dele?

— Não, o sogro. Infelizmente os pais dele são falecidos.

— Ele já apresentou problemas de coração?

— Não que eu saiba.

— Por favor, qual o nome dele?

— José Menestrel da Fonseca.

 

José Menestrel, que estava viajando com o sogro e a sogra, felizmente, recobrou os sentidos ainda na ambulância,  por meio  do  uso  do  desfilibrador -  aparelho  que emite  choques  elétricos e é  utilizado  para  casos de  parada cardíaca. O sogro ficou aliviado com a notícia, dada pelo motorista socorrista, que foi ouvida, também, pelos pais de Vicky. O motorista, antes de partir, informou o nome do hospital aonde o homem atendido estaria sendo levado.

No carro, o ocorrido foi assunto dominante nas conversas da primeira meia hora da viagem à baixada santista; mas Vicky não abria a boca, seguia calado, triste.

 

Vicky, que aconteceu? — perguntou Trícia.

— Não consegui ajudar aquele senhor.

— Ele vai sobreviver, fique tranqüilo. O médico fez o atendimento de primeiros socorros corretamente, prontamente. Isso possibilitou a espera pela ambulância.

— Não, não vai. Eu sei que ele não vai sobreviver  — disse sem pensar, mas com propriedade, como se soubesse a situação clínica daquele homem. O que deixou a Trícia intrigada.

 

Em Mongaguá, Vicky ficou a maior parte do tempo dentro de casa. Foi uma única vez à praia. E para ir ao restaurante do senhor Domingos.

 

— Bom dia, senhor Domingos.

— Bom dia, menino Vica — respondeu o dono do restaurante, contente em ver o Vicky, que desde o acidente não havia aparecido por lá.

 

O senhor Domingos notou que Vicky não brincou como de costume, estava mais sério. “O que é normal, afinal não faz muito tempo, o acontecido”, pensou o dono do restaurante.

 

— Senhor Domingos, o senhor ouviu mais alguma notícia do acidente?

— Não. Só o que já sabíamos. O que contaram os pescadores que  partiram logo após a tempestade: que só tinham encontrado os destroços da Tetis (a traineira do mestre Expedito).

— Algum outro corpo foi encontrado?

— Não. Nenhum. Disseram que, pelo local em que houve o acidente e pelo tempo já passado, dificilmente vai aparecer mais algum corpo.

 

 “Muito menos sobrevivente. Mas devemos pensar que estão no lugar onde mais amavam, o mar”, pensou, tentou se conformar Vicky.

 

— Senhor Domingos, o senhor conhece uma praia pequena com penhascos altos dos dois lados e no fundo a serra.

— Por estas bandas... conheço praia grande. Não conheço nenhuma praia pequena. Talvez mais para o sul.

— Nem ouviu falar?

— Não... Por que não pergunta ao Adelino? Ele conhece todas as praias, cada pedaço do mar daqui até Paranaguá. Ele está tomando uma cerveja na mesa lá fora.

 

Vicky foi até lá, ele conhecia o mestre Adelino de nome e de vista. Era um caiçara nascido em Cananéia e que sempre viveu à beira do mar em vilas de pescadores. Famoso pela quantidade de pescado que conseguia.

 

— Bom dia, mestre Adelino. Como vai?

— Dia. Fico feliz em te vê, Vica.

— Posso lhe perguntar sobre uma praia nestas bandas?

— Manda. Se puder ajudar é prazer.

 

Vicky descreveu a praia ao mestre Adelino, a vila com uma só rua, com a Serra do Mar ao fundo.

 

— Nunca vi uma praia como essa. Nem, jamais, ouvi alguém falar dessa vila. Com certeza não fica no litoral de  São Paulo, nem do Paraná.

 

Na segunda noite em Mongaguá sonhou, novamente, com a praia, com a vila: Ele estava seguindo algumas pessoas pela rua, que parecia sem fim, mas agora no final da rua a curva era à esquerda, e...  terminava em um paredão, com uma porta que se abria às seis horas da manhã. A hora em que se abria a porta foi dita por uma das pessoas. Deu a entender que o horário era rígido, exato.

Eles atravessaram a porta; o outro lado era o subsolo de um prédio. Subiram por uma escada e passaram por mais uma porta. Entraram em uma espécie de ante-sala, com sofás de dois e três lugares, e uma mesa com doze cadeiras.

Um senhor por volta dos sessenta anos, usando óculos que lhe davam ares de intelectual, cabelos brancos, mas não brancos como neve, um branco com impressão de terem sido pretos havia pouco tempo, saudou os visitantes, como se os aguardasse.

Após alguns minutos, saíram da ante-sala por uma outra porta. Estavam em uma livraria ou em uma biblioteca, pois Vicky notou uma grande quantidade de livros usados, e também de livros novos, divididos em alas distintas. Escutou o funcionar de uma máquina registradora... era uma livraria. E descobriu que tinham entrado pela porta dos fundos da loja, pois existia uma porta principal para uma rua, por onde transitavam uma grande quantidade de veículos.

 

Acordou... acordou com o barulho das ondas quebrando na praia, o dia estava nublado, com ventos moderados. Tomou o café-da-manhã com a família e a Trícia; e partiram, de volta, para São Paulo.

 

Na segunda-feira, Trícia, ainda, impressionada pelo ocorrido no restaurante da Rodovia dos Imigrantes - a caminho da Baixada Santista - consultou, no jornal, a coluna de informações de óbitos, e encontrou o nome José Menestrel de Fonseca. Ligou para o Vicky no mesmo instante.

 

— Eu tinha pressentido.

— Nos falamos à noite.

 

Nessa noite, Vicky não conseguiu, diante da curiosidade de Trícia, diante da necessidade de repartir as angústias com alguém, esconder o que se passava na cabeça dele, o que se passou com ele. Então, falou a ela sobre o acidente no mar, sobre o menino da academia e sobre os sonhos que vinha tendo. E, também, contou o último sonho, do qual se lembrou até de ter saído da livraria, pela porta da frente.

 

— Eu saí da livraria com um homem e fomos até uma empresa de resgate com ambulâncias. Ele era um socorrista que trabalhava no resgate de emergência de pessoas.

— Você deve ter ficado impressionado com o ocorrido no restaurante a caminho da praia, o que o levou a sonhar com ambulância.

— Acho que não, continuando o sonho, eu fiquei o dia todo com o socorrista, participei até de dois chamados... dois atendimentos de emergência, leves.

 

Vicky lembrou-se até dos atendimentos.

 

— O primeiro foi o de um rapaz ferido, na cabeça, por um tiro; o qual, após ter sido atendido e voltado do hospital, começou a passar mal; então, a mãe chamou a ambulância, e ele foi levado de volta ao hospital.

— Estou impressionada com os detalhes.

— Há mais, o outro chamado foi de uma mulher que tinha sido espancada pelo marido e estava mal física e mentalmente. Em ambos os casos, o socorrista fez um trabalho de conversar com os acidentados, de acalmá-los, de confortá-los, enquanto os levava para o atendimento hospitalar.

— No sonho você viu em que cidade estava, se havia alguma referência? — perguntou Trícia.

— Com certeza era São Paulo, lembro-me de ter visto o prédio do Banespa, e... a livraria ficava no andar térreo de um edifício.

— E a empresa de resgate?  Alguma lembrança?

— Não. Não consigo me lembrar... nem do nome da empresa, nem do hospital, nem do local.

 

O assunto intrigava Trícia, tanto quanto perturbava Vicky. Resolveram pesquisar as livrarias de São Paulo, e tentar descobrir se a que ele havia descrito existia, mesmo sabendo que seria difícil, em razão da enorme quantidade existente em São Paulo.

 Um mês e meio, eles gastaram, na busca da livraria dos sonhos de Vicky. Após pesquisa nas listas telefônicas...  Foram à Vila Mariana, Cambuci, Vila Romana, Santo Amaro, Ipiranga, Tatuapé... Visitaram umas vinte livrarias e nada... nenhuma parecida com a procurada, com a descrita por Vicky.

 

— Vamos esquecer, acho que foi só um sonho — disse Vicky. — E existem muitas livrarias em São Paulo, vamos ficar cinco anos procurando.

 

Passou o ano, Vicky, brilhante na faculdade, foi aprovado em todas as matérias que cursou, as atrasadas, as do sétimo e as do oitavo semestre.

No próximo ano faria as matérias do nono e do décimo semestre. Terminaria a faculdade e poderia começar a trabalhar.

 

 

6

 

 

1982. Maio. Uma terça-feira, sete horas da manhã. Vicky sai de casa para ir à faculdade... Quando está na Marginal do Pinheiros, o trânsito pára.

 

 

 

 — Engarrafado, como sempre — disse a si mesmo, olhando para os próprios olhos refletidos no retrovisor do carro. “Mas é muito cedo para estar tão ruim, algum acidente deve ter ocorrido”, pensou.

 

O tráfego de veículos estava permitido somente nas duas faixas da direita. Vicky, logo, descobriu o motivo, havia acontecido uma batida entre dois carros, um deles estava bastante amassado na parte da frente.

Vicky notou uma ambulância aproximando-se... trafegava entre as faixas, pedindo passagem, com sirene e luzes piscando. Ele deu passagem, tirando o carro um pouco para a esquerda.

O trânsito de veículos passou a ser feito somente na última faixa, da direita. A ambulância parou a poucos metros na frente dele, desceram o motorista e o socorrista. O trânsito parou de vez. O carro de Vicky ficou bem ao lado do local do acidente, o que possibilitou a ele uma visão completa do que se passava e, também, do atendimento dos feridos. Ele pode ver que uma moça estava deitada no chão, desfalecida.

Vicky desceu do carro com a intenção de ajudar. Como sempre acontecia, principalmente, nesses últimos anos, ele se apresentava, pronto para socorrer pessoas em dificuldade. Chegou perto da moça, a tempo de ver o enfermeiro, abaixado ao lado dela, pôr a mão esquerda na testa da moça. Vicky viu uma luz sobre os dois, a mesma luz que tinha visto, quando do atendimento do menino da academia; e, não se espantou, quando a moça recobrou os sentidos. O enfermeiro e o motorista puseram a moça na maca e levaram-na para a ambulância.

No caminho até a ambulância, o enfermeiro e o Vicky olharam-se de relance; foi muito rápido, mas o suficiente para ele sentir que, se não o conhecia, pelo menos, o tinha visto em algum lugar.

Vicky passou o dia pensando no ocorrido... na luz e no enfermeiro que lhe pareceu familiar.

 

— Era ele... era o enfermeiro do meu sonho — disse à Trícia ao se encontrar com ela em um shopping para o almoço. O shopping ficava perto do trabalho de Trícia.

— Então vamos achar esse cara!

— Vai ser mais difícil que a livraria, existe uma quantidade enorme de hospitais e, também, de empresas terceirizadas que fazem o serviço de resgate.

— Mas temos de tentar!

 

Ficaram quase um mês visitando hospitais, em busca do enfermeiro... em vão. Como não tinham o nome, e como Vicky não tinha uma descrição que pudesse diferenciá-lo da maioria dos funcionários de uma empresa de resgate de emergência, seria necessário se encontrar com ele.

Em um desses dias de busca, Vicky descendo de carro, com a Trícia, pela Avenida Consolação, a avenida que por várias vezes ele havia enfrentado nas corridas de São Silvestre...

 

— Você disputou a São Silvestre?

— Sim! Por que o espanto? Eu treinava todo santo dia.

— Você me surpreende a cada dia.

— O Copan! — exclamou Vicky, como quem havia visto um fantasma.

— Sim, é o Copan ali na frente, na Avenida Ipiranga, um dos símbolos de São Paulo, o maior edifício residencial do país, o prédio em forma de “esse”, o...

Trícia! Eu sei tudo isso. É que me lembrei de que o prédio apareceu em um dos meus sonhos.

— Então você passou por esses lados. De que mais se lembra? Da Praça da República, da Avenida São João?

— Não, a livraria!

— A livraria fica no Copan?

— Não. Mas acho que ela fica em uma avenida que começa na Ipiranga, talvez a Avenida São Luis!

— Vamos passar lá, então!

— É melhor deixarmos para amanhã, hoje já está tarde. Amanhã eu venho de Metrô e procuro com calma.

 

No outro dia, Vicky tomou o Metrô na Estação Praça da Árvore. Fez a mudança de linha na Estação Sé e desceu na Praça da República. Eram dez horas da manhã quando chegou à Avenida São Luis. Como a avenida é bem curta, em extensão, seria fácil descobrir se havia, ali, uma livraria.

Em poucos minutos, Vicky encontrou uma livraria; a qual ficava quase em frente, do lado oposto da avenida, a uma Biblioteca Pública. A entrada era uma só porta, parecia pequena olhando de fora, ficava no andar térreo de um prédio alto. Entrou e foi atendido por uma moça, aparentando mais de vinte e menos de vinte e cinco anos. Morena, alta e atraente.

 

— Por favor, você tem o livro “Alma de Criança”   — perguntou Vicky para ganhar tempo e poder olhar, examinar a livraria e saber se era a que procurava.

— Sim, temos. Vou pegá-lo.

 

Enquanto a atendente foi buscar o livro, Vicky percebeu que havia uma porta na parte dos fundos da loja. E o local pareceu-lhe familiar, embora, que ele se lembrasse, fosse a primeira vez que visitava aquela loja.

 

— Obrigado, vou levá-lo — era o segundo livro, igual, que compraria. “Alma de Criança” foi o primeiro livro que leu, depois de uns cinco anos sem ler livros. — Por favor, você poderia me informar quem é o dono da livraria?

— Não sei se devo. Para que o senhor quer saber?   — a atendente estava reticente em lhe fornecer a informação.

— Não se preocupe, é só curiosidade, pois acho que o conheço. Ele pode ser um amigo de meu pai — então Vicky descreveu o senhor que apareceu nos sonhos dele.

 

Embora a descrição não fosse tão boa, pois só se lembrava dos cabelos brancos e que ele usava óculos que o deixavam com o jeito de um intelectual, ele sabia ser convincente quando queria, principalmente com mulheres. Pois a arte de Vicky não estava só nas palavras, mas como as dizer, na entonação e, principalmente, no sorriso que desenvolvera por conta de muitas aulas perdidas... muitas aulas da faculdade, não da vida.

 

— É, meu patrão é parecido com a sua descrição.

— Ele está?

— Não, ele só vem lá pelas quinze horas.

 

Vicky gostaria de passar pela porta dos fundos, ou pelo menos perguntar o que havia lá nos fundos. Mas como perguntar? Pagou pelo livro, e perguntou se havia banheiro na loja e se poderia usá-lo.

 

— Sim. Lá nos fundos. Fique à vontade.

 

Naquele momento entraram duas mulheres na loja e a moça foi atendê-las. Vicky dirigiu-se até os fundos da loja. O banheiro ficava após a porta que ele havia avistado. Como a atendente estava distraída, foi até à porta. Estava aberta. Entrou. Era uma sala. Era a ante-sala dos sonhos dele. A mesma mesa e os mesmos sofás. Avistou uma outra porta nos fundos da sala. Foi rapidamente até a outra porta, a que supostamente deveria acessar uma escada. Estava fechada. Tentou olhar pelo buraco da fechadura. Não viu nada, estava escuro. Decidiu sair dali.

 

— Muito obrigado. Até outro dia.

— Volte sempre.

 

À noite encontrou-se com a Trícia.

 

— Sabe o que significa isso? Eu ter descoberto que a livraria existe? Que a ante-sala da livraria existe? Não?

— Sim. Só não sei se eu posso acreditar. Se nós podemos dimensionar o significado dessa descoberta.

— Se depois da ante-sala existir uma escada, se depois da escada aparecer uma passagem para uma praia. Pode significar que os meus sonhos não eram somente sonhos. Pode significar que os meus sonhos aconteceram de fato, e que a praia existe, e... que eu curei aquele menino.

— Ainda é cedo para uma conclusão dessas, Vicky. Uma ante-sala em uma livraria parece-me algo normal.

— Mas uma ante-sala com mesa e sofás iguais às de meu sonho, parece-me muita coincidência.

— Só existe um próximo passo. Temos de voltar à livraria para conversar com o dono.

— Você está certa, mas eu acho que devo voltar sozinho.

 

No outro dia às dezesseis horas e trinta minutos, Vicky voltou à livraria. Ainda na entrada, avistou o dono. Sentiu o corpo tremer. Começou a suar frio. Era o homem que aparecera nos sonhos dele. Tentou chamá-lo, a voz não saiu. O homem veio ao encontro dele.

 

— Posso ajudá-lo, meu jovem?

Ssss... — não conseguiu responder.

— Parece que você não está bem. Sente-se aqui. Cátia, traga um copo d’água, por favor.

 

A atendente, a Cátia, veio com um copo com água.

 

— Esse moço esteve aqui ontem. Foi ele quem perguntou pelo senhor — Dirigiu-se ao dono da livraria, referindo-se ao Vicky, em um tom leve, simplesmente informativo, sem nenhuma entonação de preocupação.

 

Vicky bebeu a água. Começou a se sentir melhor. A cor do rosto, que estivera branco, retornou ao normal.

 

— Está melhor, meu jovem?

— Sim. Obrigado — conseguiu agradecer.

— Então, veio me procurar. Em que posso ajudá-lo?

— O senhor conhece-me? O senhor viu-me aqui na  loja há um ano e meio? O senhor sabe o que me aconteceu? O senhor...

— Calma, meu filho. Uma pergunta de cada vez... Não. Eu não conheço você.

— Mas, já me viu aqui!?

— Nunca o vi antes, senti muito.

— Mas aqui, na sua loja, existe uma ante-sala!?

— Sim, onde recebo os fornecedores e alguns amigos para a leitura de livros e discussões literárias. Mas como você sabe que temos uma ante-sala?

— Eu a vi nos meus sonhos. Podemos ir até lá? Por favor!

— Sim, podemos — respondeu o dono, não demonstrando nenhuma preocupação. Mas também nenhuma surpresa, como se soubesse, que Vicky estivera na ante-sala no dia anterior, como se esperasse, que Vicky pediria para ir até lá naquele momento.

 

Enquanto caminhavam em direção aos fundos da loja, em direção à porta que dava acesso à ante-sala, Vicky ia pensando em como abordar o assunto que interessava a ele, o assunto que o preocupava havia tanto tempo. Seria difícil, pensava o atormentado rapaz.

 

— Por favor, entre — ofereceu o senhor, abrindo a porta.

— O que há atrás daquela porta? — perguntou Vicky, que mal tinha acabado de entrar na sala e nem tivera tempo de olhar para a porta, até então.

— Por favor — caminhou, o senhor, até a referida porta, como se soubesse do interesse de Vicky... sem preocupação, sem surpresa.

 

Abriu a porta. Vicky atravessou-a. Encontrou uma sala com armários. Ele não se lembrava daquela sala... uma sala cheia de prateleiras.

 

— Esta sala... — Vicky, foi interrompido.

— Usamos esta pequena sala como arquivo de documentos fiscais da loja.

— Não posso acreditar. Essa porta era o caminho para eu entender tudo que tem me acontecido nesses últimos meses.

— Sinto não poder ajudá-lo.

 

Vicky voltou para casa, frustrado por não ter conseguido achar nenhuma resposta para tantas dúvidas; nem conseguiu dizer àquele senhor o que estava buscando. Afinal, nem ele sabia por certo o que procurava, ou melhor, quem acreditaria que ele estava procurando uma passagem para uma praia; uma praia que ninguém conhecia; uma praia que ficava... na Praça da República?

No sábado encontrou-se com a Trícia, e conversaram a respeito da livraria, procurando entender ou assimilar o que se passou.

 

— Eu tinha a certeza de que encontraria a resposta para tudo isso lá na livraria. O dono... é o mesmo homem do meu sonho; a livraria... é a mesma, com as divisões de livros novos e usados, e mais: o enfermeiro socorrista... o bombeiro... que me pareceram familiares.

— É muita coincidência! Por outro lado, o que estaria fazendo uma porta, uma passagem em uma avenida em pleno centro de uma grande cidade situada no planalto... que dá em uma praia?

— Isso é o que eu quero entender. Isso é o que eu preciso entender. Isso é o que eu tenho medo de descobrir.

— Você já pensou? Se o que você sonhou for verdade, nós... você mais do que eu... teremos de mudar nossas crenças; teremos de passarmos a acreditar em milagres;  voltarmos a acreditar na existência de Deus.

— Ou passarmos a acreditar em bondade, em fraternidade, em amor ao próximo...

Vicky, pensei em algo que podemos fazer!

— Por favor, diga!

— Você disse que a passagem para a livraria se abria às seis horas. Era esse o horário. Não era?

— Sim, parecia que era um horário preciso.

— Vamos à livraria, na segunda, às seis horas da manhã. Ficarem plantados na frente da livraria para  tentarmos ver se as pessoas que você procura - o bombeiro e o enfermeiro - aparecem por lá.

— É uma idéia. Boa, eu diria.

 

Vicky tentou esquecer o assunto no fim de semana, embora só pensasse na segunda-feira.

 

Segunda-feira, seis horas em ponto. Vicky e Trícia postaram-se a uns trinta metros da porta da livraria. Tinham vindo de Metrô, e até se surpreenderam pela grande quantidade de pessoas que usam esse meio de transporte naquela hora da manhã, exatamente às cinco horas e trinta minutos, quando chegaram à estação onde embarcaram.

Às seis horas e quinze minutos saíram um homem e uma mulher, pareciam que formavam um casal, ou seja, que eram casados. O casal caminhou na direção contrária a que estavam os dois detetives de ocasião. Vicky não os reconheceu. Dez minutos depois saiu mais um casal, que passou na frente deles. Vicky acreditou ser o casal da casa em que dormiu, no sonho; mas como era noite, quando os viu, no sonho, não podia precisar.

Às seis horas e trinta minutos saíram dois homens, cada um caminhou em uma direção da rua, o que passou ao lado deles era o bombeiro. O outro parecia ser o enfermeiro.

Vicky e Trícia resolveram se separar, cada um seguiria um dos homens. Ele, o suposto enfermeiro e ela, o outro.

O homem que Trícia seguia, caminhou até o fim, na verdade início, da Avenida São Luis, virou à direita na Avenida Ipiranga e entrou na Estação República do Metrô. Ela o seguia a poucos metros atrás; o movimento de pessoas nessa área da cidade era intenso, o que dificultava o trabalho dela, mas também ajudava-a, pois dificilmente seria notada. Conseguiu entrar no mesmo vagão que o perseguido, o que não foi uma tarefa das mais fáceis, por causa do grande movimento de pessoas, naquela hora do dia, que utilizavam - ou utilizam - o Metrô.

Vicky por outro lado, teve de tomar mais cuidado. Providencialmente levara um casaco com capuz, que passou a cobrir a cabeça. O homem pegou um ônibus no ponto que ficava a pouco mais de cinqüenta metros da livraria. Vicky tomou um táxi. “Que malandro sou eu”, pensou, “de táxi posso seguí-lo sem ser notado, se entro no ônibus sou descoberto de primeira”.

Trícia teve de fazer baldeação na Estação Sé (a  da Praça da Sé). Nessa estação, teve de quase colar no homem, para não perdê-lo de vista, em virtude do enorme fluxo de pessoas... um fluxo difuso, perturbado, confuso, desordenado, aleatório que torna quase impossível evitar alguns esbarrões, principalmente entre as pessoas com pressa e: “como existem pessoas com pressa em São Paulo”, pensou Trícia; nessas horas até parece que todos os paulistanos vivem com pressa. Tomaram o Metrô da linha azul em direção ao Jabaquara, direção oposta ao Bairro de Santana. O homem ficou em pé na área de embarque e desembarque do trem, perto da porta, ela sentou-se no segundo banco à direita da porta em que entrou. O perseguido desceu na Estação Santa Cruz, utilizando a saída em frente a um grande colégio, e caminhou na direção ao centro. Ela, a poucos metros, o seguia. Ele entrou em uma corporação do corpo de bombeiros. Trícia passou em frente ao prédio e seguiu ao Metrô Vila Mariana, a próxima estação, no mesmo sentido em que vinha caminhando.

 

Vicky não vai acreditar”, pensou Trícia.

 

Naquele momento Vicky estava pagando o táxi, estacionado no Largo do Cambuci. Disse ao motorista ficar com o troco, pois a pessoa, que perseguia, ia bem na frente, subindo a Avenida Lins de Vasconcelos, após ter descido do ônibus.

O homem seguido por Vicky, distante, então, de quarenta metros, caminhou por uns trezentos metros e entrou em um prédio. Vicky, após rápidas passadas chegou ao local... um prédio térreo, um galpão, com várias ambulâncias estacionadas. Vicky descobriu, após perguntar a um dos seguranças que se postavam em frente do prédio, funcionar ali uma empresa particular de resgate com ambulância.

Decidiu voltar no dia seguinte, pois precisava saber da Trícia, saber como ela havia se saído, saber se estava tudo bem com ela e se havia conseguido descobrir aonde o outro homem tinha ido. E, também, para planejar como faria a abordagem ao enfermeiro;  uma vez que, estava confirmado se tratar do enfermeiro procurado.Voltou para casa, onde haviam combinado se encontrarem.

 

Vicky,  você não vai acreditar, o homem...

— Oi , Trícia. Primeiro um beijo... Agora pode falar — a ansiedade  fez com que ela fosse disparando a novidade.

— O homem é bombeiro, ou pelo menos trabalha na corporação. Ele entrou em um prédio dos bombeiros situado na Avenida Domingos de Morais.

 

O nome da avenida ela havia lido na placa que fica no poste de uma das esquinas, pois naquela região ela nunca sabia se estava na Avenida Domingos de Morais ou na Avenida Vergueiro.

 

— Excelente! Bela, bela detetive, você está me saindo.

— E você, descobriu alguma coisa?

 

Vicky falou do enfermeiro, da empresa de resgate e da decisão de voltar lá no outro dia.



 

7

 

 

Sete horas da manhã, Vicky aguardou, em um bar em frente ao galpão, o enfermeiro chegar e entrar, então, dirige-se à portaria do prédio.

 

 

 

Ei, amigo — Vicky aproximou-se de um dos dois seguranças que se posicionavam na frente da empresa.

— Pois não?

— Por favor, o enfermeiro que acabou de entrar era o José? — escolheu um entre os nomes mais comuns, para ter aumentada a chance de acertar.

— Por que você quer saber?

— É que fiquei de encontrar-me com o José, aqui. Ele é meu primo, mas faz muito tempo que eu não o vejo.

— Não, não era ele. O José, hoje, trabalha no período da tarde, esse que acabou de entrar  era o Alex.

— Que azar! Por favor, eu posso entrar para deixar um recado, com alguém, para o meu primo?

— Pode, procure a Amélia, ela é atendente e pode ajudá-lo.

 

Entrou na empresa de resgate com ambulância. Enquanto esperava ser atendido, não pode deixar de notar um cartaz, pendurado na parede da sala de recepção, com a missão da empresa: “Atuamos, exclusivamente, na remoção e atendimento pré-hospitalar de pacientes e nossa missão é: Salvar Vidas”.

Salvar vidas: Vicky sentiu um arrepio na pele quando leu essas palavras. Salvar vidas... era isso que ele queria fazer, mas adorava a engenharia naval.

 “O que fazer?”, pensou...

 

— Bom dia, em que posso ser útil? — a atendente havia se aproximado.

— Bom dia. Por favor, eu gostaria de conversar com o Alex... Diga que é um amigo.

 

— Alex, favor se dirigir à portaria. Alex, favor se dirigir à portaria — anunciou, a atendente, no sistema de som da empresa.

 

Em alguns minutos um homem apareceu na recepção; aparentava ter por volta de quarenta anos de idade, talvez menos, bem menos, magro, moreno, um pouco mais baixo que o Vicky, e sorridente, bastante sorridente.

Vicky, mal bateu os olhos nele, reconheceu-o, era ele... era ele o enfermeiro que aparecera no sonho dele.

 

— Bom dia. Tudo bem? — disse Vicky.

— Bom dia, Vicky. Tudo bem?

 

Vicky ficou atônito, por essa ele não esperava. O enfermeiro cumprimentou-o pelo nome, como se o conhecesse. E, ainda, como se o esperasse, não demonstrou nenhuma surpresa.

 

— Por favor, diga-me, você me conhece?

— Sim. Sei que me seguiu, ontem. Sei que esteve na livraria.

— É verdade. Eu o segui desde a livraria.

— Sei, também, por que você está aqui.

— Sabe? Então, diga-me, por que estou aqui?

— Porque quer saber quem sou eu. De onde me conhece. Por que me conhece.

— De fato. São muitas as minhas perguntas, nem sei por onde começar. Antes das perguntas mais difíceis, por que o senhor da livraria disse que não me conhecia? Ele me conhece, também. Não conhece?

— Sim, conhece, mas ele não pode explicar. E, eu não posso mentir.

— Mas ele pode?

— Não. Não pode, mas não precisa dizer a verdade, quando a verdade não pode ser dita. Ele não é como nós. Nós não podemos mentir.

— Nós?

— Eu e as pessoas como eu, e como você será, um dia, no futuro.

— E o que você é? O que eu vou ser no futuro? — Vicky aparentava estar nervoso... ele estava nervoso.

— Calma. Para explicar isso a você, é preciso muita calma, e tempo. O que não temos agora. Eu estou no trabalho e tenho de ficar sempre disponível. Se começar a explicar e tiver de sair para uma emergência, terei de interromper nossa conversa, o que não será bom. Acredite em mim, por favor.

— E quando poderemos ter uma conversa, calmamente, com tempo.

— Encontre-me, hoje, às cinco horas da tarde, na livraria. Mas, por favor, vá sozinho, sem a namorada.

 

Ele sabia, até, da existência da Trícia. Como esperar até às cinco horas?... Vicky teria de esperar, não havia outro jeito. E como estar preparado para esse encontro, se ele nem imaginava o que ia descobrir?

Ele se encontrou com a Trícia, para o almoço. Conversaram sobre os medos de Vicky. Falaram sobre todas as possibilidades. Seriam eles, o bombeiro e o enfermeiro, as pessoas que o salvaram da tempestade no mar? Explicariam a cura do menino da academia e da moça do acidente de carro na Marginal?

 

Dezesseis horas e trinta minutos. Vicky chegou à livraria.

 

— Entre, por favor — o dono da livraria esperava-o... Vicky foi conduzido à ante-sala.

— Obrigado.

— Aceita uma água, um chá?

— Obrigado, eu estou bem.

— Desculpe, mas eu não tinha o direito de lhe dizer nada. Eu o vi aqui, junto com eles. Mas você não voltou mais, e eu também não sabia por quê. Eu não faço perguntas, só os ajudo. Com licença, vou voltar à livraria, fique à vontade.

— Tem toda. Obrigado.

 

Aquela conversa, ou melhor, o que o homem disse a ele, só ajudou a aumentar o desejo, a necessidade, de ter todas as perguntas, todas as dúvidas respondidas. Vicky esperou uns quinze minutos, então, entrou na sala um dos casais que ele havia visto saindo da livraria; eles o cumprimentaram pelo nome. Logo em seguida o outro casal e o bombeiro, os quais o cumprimentaram, também, pelo nome. O bombeiro dirigiu-se ao Vicky, que se mantinha sentado no sofá localizado em dos cantos da sala e em silêncio.

 

Vicky, deixe-me apresentar os nossos amigos aqui. Paulo e Ana, médicos, são casados, e, trabalham no Hospital Central, na área de pronto-socorro. O outro casal, Jaime e Solange, são artistas, atores, trabalham como voluntários em hospitais de crianças, e de idosos, alegrando os pacientes, fazendo a vida deles um pouco mais feliz, um pouco mais suportável... levam esperança aos pacientes, e, proporcionam momentos de distração em um ambiente que por si só é triste.

 

O Paulo e a Ana aparentavam ser um ou dois anos mais novos que o segundo casal, de idades em torno de trinta e cinco anos. Mas, quando se apresentaram, disseram que tinham a mesma idade, trinta e oito anos, enquanto Jaime e Solange quarenta e dois, e quarenta anos, respectivamente.

 

— Eu sou o Pedro — continuou, a mesma pessoa. — Sou bombeiro, e estou com a turma há seis anos, tenho trinta e nove anos. Sou solteiro. O único... quer dizer o único aqui, o Alex também é solteiro.

— Prazer, a todos. Sou o Vicky, estudante, vinte e cinco anos, e estou aqui para...

Calma, Vicky! Sabemos por que está aqui, sabemos quem é você. Vamos esperar o Alex, e terá, então, todas as suas respostas.

— Quem é o Alex? Por que eu o conheço? — Vicky não conseguia segurar as perguntas.

— Fique tranqüilo. Alex é o seu mentor; ele, só ele poderá responder todas as suas perguntas. Alex é enfermeiro socorrista, como você já sabe, e deve estar...

— Boa tarde, turma! Boa tarde, Vicky, meu amigo! — Alex acabara de entrar na sala.

 

Eram quase seis horas, hora da Ave-Maria; faltavam três minutos. Foi o que o Pedro disse, e, acrescentou que: tinham de se apressar. Vicky, surpreso, sem saber o que fazer, o que dizer, o que pensar, só seguia aquelas pessoas, que não lhe eram estranhas, e que lhe passavam tranqüilidade... uma tranqüilidade que ele só conhecia quando estava com os pais.

Abriram a porta dos fundos da ante-sala e puxaram um armário. Atrás do armário havia uma outra porta. Abriram a porta e desceram uma escada... Era a que Vicky procurara. No final da escada, um corredor estreito, poucos centímetros mais que dois metros de largura, quase quarenta metros de comprimento; com uma iluminação suave... proporcionada por algumas luzes amarelas. No fim do corredor outra porta. A porta abriu-se sozinha, eram seis horas da tarde. Atrás da porta, uma sala –– “a passagem”, disse Alex –– de três metros de largura por cinco de comprimento, sem nenhuma iluminação, com outra porta no lado oposto, que se abriu no instante em que a primeira se fechou. O efeito gerado, no fechar e abrir das portas, pelas luzes amarelas do corredor parcamente iluminando a passagem e contrastadas por uma luz natural que surgiu do outro lado e invadiu a passagem, criou um momento mágico... sublime.

Atravessaram a última porta. Do outro lado... uma rua de terra. Vicky, perplexo, sem palavras, seguia as pessoas. Uma curva à direita... a vila... o mar ao fundo.

 

 Andaram uns duzentos metros até as casas. Vicky deteve-se por um instante para olhar a praia... era a praia dos sonhos dele.

Vicky sentiu as forças desaparecerem, estava sem fôlego, não conseguia acreditar no que estava vendo, no que estava acontecendo. Sentou-se no chão de terra, quase sem sentidos. Pedro e Alex levaram-no a uma das casas e deitaram-no em um sofá.

Era a casa onde moravam o Jaime e a Solange, a qual apareceu com um copo de água com açúcar, que Vicky bebeu em vários goles.

Ele começou a recobrar os sentidos; conseguiu distinguir as pessoas e perceber onde estava... era a casa em que ele havia estado, no sonho;  naquele momento podia afirmar que não havia sido um sonho, tinha estado, realmente, naquela casa na semana do acidente, era a segunda casa em que ele havia entrado, reconheceu-a pela decoração da sala, e principalmente pelo sofá... era o sofá em que havia dormido.

 

Enquanto isso... Trícia, grudada ao aparelho de telefone, esperava uma ligação do namorado. Eram oito horas da noite, e nada de notícias dele. Ela sabia que ele tinha ido à livraria e aguardava ansiosa um retorno. Suplicava por novidades, tanto quanto, para que Vicky estivesse bem.

O telefone tocou.

 

— Pronto! — Ela atendeu no primeiro toque, com esperanças de que fosse Vicky.

Trícia, é o pai de Vicky. Por favor, ele está com você?

— Não. Ele foi à casa de um colega, fazer um trabalho da escola e ficou de dar uma passada aqui em casa, depois de terminarem — respondeu dessa forma para não passar preocupações para os pais de Vicky, os quais não sabiam de nada que estava acontecendo.

 

O Vicky, após o acidente do restaurante na rodovia a caminho da Baixada Santista, tinha parado de contar os acontecimentos aos pais. Pois eles estavam ficando mais perturbados que o filho.

 

— Se ele ligar ou aparecer aí, você nos avisa? Por favor.

— Sim, fiquem tranqüilos.

 

 

8

 

 

Vila. Casa do Jaime e da Solange. Vicky está totalmente recuperado. Alex conversa com Jaime na sala, enquanto bebem chá.

 

 

 

— Tudo bem? — perguntou Jaime, notando que Vicky estava se sentado no sofá.

— Sim, obrigado. Aqui é a casa, a vila, onde estive. Estou certo?

— Está correto.

Podemos ter nossa a conversa agora? — perguntou Vicky.

— Vamos jantar primeiro. Temos tempo de sobra, devemos voltar à cidade só amanhã às seis (seis horas da manhã) — respondeu Jaime.

 

Solange tinha posto o jantar na mesa. Só verduras, legumes e pão. As quatro pessoas sentaram-se à mesa.

 

— Nós não comemos nenhuma espécie de carne, aqui na vila — explicou Solange. — De origem animal, só leite e queijo.

— Para mim está bom, obrigado.

 

Após o jantar, de volta à sala...

 

Vicky, se quiser, pode começar a perguntar — disse Alex.

— Como é possível a porta, ou a passagem, daqui até a cidade.

— Essa deveria ser a última pergunta, Vicky, porque ela é explicada com as respostas das outras perguntas — respondeu, novamente, Alex, o qual responderia todas as perguntas de Vicky.

— Então, quem são vocês?

— Somos o que você será um dia.

— Será que vou acertar alguma pergunta?... Como eu vim parar aqui? Quem me trouxe? Quem me salvou do acidente do barco?

— Você veio parar aqui por acidente, não do barco, que também seria a resposta. Explicando melhor, você só era esperado quando tivesse trinta e três anos de idade. O acidente do barco aconteceu antes da hora... dez anos. E, ainda, você viria para cá depois de um acidente com carro, não com barco.

— Espere um pouco. Eu morri?

— Não, não propriamente dizendo. Nós não chamamos de morte, mas de estar em um estado de elevação espiritual. E esse tempo não é maior que quatro minutos.

— Quem me salvou?

— Após o acidente você foi trazido por um outro morador da vila, o qual trabalha em um barco da marinha, a qual protege a costa marítima brasileira. Ele o achou, deitado sobre uma tábua, flutuando, na água. E antes que você pergunte... Sim, ele estava procurando você.

— Todos os moradores da vila mo...

— Todos nós tivemos a passagem de elevação espiritual, como você. Tínhamos uma vida normal como a que você tinha, ou melhor, está tendo. Somos em número de trinta pessoas aqui, nesta vila, mas existem outras pelo mundo.

— Todas as pessoas, desta vila, trabalham em São Paulo?

— Só seis, os que você já conhece. Os outros trabalham em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Curitiba, Florianópolis e Santos. Nós trabalhamos em cidades diferentes de nossa origem, por exemplo, eu sou de Fortaleza, O Jaime de Londrina e a Solange de Belo Horizonte.

 

— Aqui, na vila, nós trabalhamos também. Tudo o que está na mesa veio de nossas plantações; trabalho de um dia por semana de cada um de nós, e da primeira hora com luz de sol de cada dia — comentou Jaime.

— No que consiste o trabalho de vocês na cidade? Qual a função de vocês?

— Nós trabalhamos em profissões que atendem pessoas acidentadas ou doentes; pessoas que precisam de auxílio médico, pessoas que precisam de socorro de emergência, pessoas que sofrem. Nossa função principal é diminuir o sofrimento... consolar pessoas que estão sofrendo ou que vão morrer em breve; e, também, servir de instrumento para salvar pessoas que não deveriam morrer, isto é, que, acidentalmente, morreriam antes da hora delas.

— Vocês salvam todas as pessoas que, sem ajuda, morreriam antes da hora delas?

— Não! Infelizmente não, só uma pequena parcela, nós somos em um número reduzido. E nós não salvamos as pessoas, apenas servimos de instrumento.

— Então, eu, realmente, salvei o menino da academia?

— Sim, você serviu de instrumento.

— Então, por que não consegui salvar o homem do restaurante?

— Nós só servimos de instrumento para filhos, quer dizer, pessoas que têm os pais vivos... ou um deles, a mãe ou o pai, vivo.

— Por que razão?

— Está vendo, após tantas perguntas... a principal resposta. Tudo tem seu tempo, sua hora — Jaime, por favor.

 

— Em nome do pai, do filho, do...

 

— Nós somos o instrumento de Deus para manter a ordem natural de quem morre: primeiro os pais, depois os filhos. Para que nenhum pai, ou mãe, precise enterrar o filho, ou filha... Para isso é que nós servimos. Para evitarmos que ocorram algumas dessas mortes em seqüência trocada — disse Alex, após interromper o Jaime.

 

Foi explicado, também, ao Vicky que eles viviam ali, na vila, por dez anos, dos trinta e três aos quarenta e três anos de idade. Nesse período da vida, chamado de fase de luz - quando as pessoas normais envelhecem quase sem demonstrar fisicamente, quase sem ter alterações fortes no rosto; período em que é difícil determinar com precisão a idade de uma pessoa -, os moradores da vila não envelheciam.

Após esse período eles perdiam a capacidade de salvar pessoas e levavam uma vida normal, da maneira que escolhessem. Mas todos, que passaram por ali, continuaram a trabalhar com pessoas, ajudando, consolando, diminuindo o sofrimento delas.

E, viviam na vila porque ali eles se purificavam. Esse tempo, na vila, era importante para restabelecerem a paz interior, para estarem sempre bem dispostos, sem os problemas do dia-a-dia das pessoas normais.

 

— Quanto tempo eu fiquei aqui?... Após o acidente com o barco. Uma semana?

— Sim, nesse tempo você foi à cidade duas vezes, e em ambas ficou comigo na empresa de resgate com ambulância. O resto do tempo você dormiu. Nós chamamos esse período de “estágio de treinamento”, quando a pessoa aprende sem notar que está aprendendo, trabalha sem notar que está trabalhando. É como se, você estivesse sonhando... Você estava comigo na cidade, mas pensava que era um sonho. Que estivesse sonhando que estava na cidade.

— Difícil entender, não? — disse Jaime.

— Fácil não é. E por que não me lembrava de ter estado aqui?

— A revelação do porquê cada um de nós está aqui, acontece no fim do período de treinamento, o qual não tem um tempo definido. Depende de cada pessoa. Como o seu treinamento não foi completado, tudo foi apagado de sua memória.

— Você nunca se lembraria desses dias, se não fosse pelo acidente do menino da academia. Aquilo reviveu suas lembranças, por meio de seus sonhos — complementou Jaime.

 

— E, também... talvez, principalmente, porque você, Vicky, é especial.

— Mais uma pergunta. Por que não estou aqui? Quero dizer, por que não permaneci aqui? Por que voltei para a cidade, para a minha vida normal?

— Ele decidiu pela sua volta. Como dissemos, você chegou com dez anos de antecedência. Então... agora, você é esperado só para daqui a oito anos.

— Então eu vou voltar para a cidade, novamente, e sem memória?

— Sim, você vai voltar para a cidade, mas vai se lembrar de tudo; vai continuar sabendo o que você é. Nós recebemos ordem para lhe esclarecer todas as suas dúvidas. Você vai retornar para a sua vida normal e se preparar para a sua futura função, pela pessoa que você é, por sua índole, por sua bondade. Como eu disse, você é especial, a sua força espiritual é a maior que já vi.

— E se eu não quiser ser o que vocês são?

— Você já é. Nada ou ninguém vai conseguir mudar isso. Nem você vai querer.

— Quando posso voltar para casa?

— Amanhã... Mas há uma condição.

— Qual?

— Você não poderá contar a ninguém o que você viu aqui; o que você ouviu aqui; o que você é. E a ninguém inclui seus pais e sua namorada.

 

— E como vou saber que: a minha hora de viver na vila, chegou?

— Fique tranqüilo; você saberá — conclui Alex.

— Eu vou morrer outra vez?

— Você não morreu, Vicky! E você não morrerá para vir para cá. Nós não estamos mortos, mas vamos morrer um dia, depois de deixarmos essa função. Não somos imortais, somos protegidos somente nesse período.

— E os minutos de desfalecimento?... Ainda não entendi.

— É o tempo que o corpo humano suporta de desfalecimento, sem o risco de perder algumas funções importantes. Nesses minutos, em que ficamos inconscientes, nós passamos para um estágio superior de vida. Estágio em que devemos viver para o próximo. Estágio de doação plena.

— É similar aos casos em que algumas pessoas se tornam pessoas melhores após uma experiência de risco de vida?

— Podemos dizer que sim, mas é muito mais profundo, é uma entrega total.

 

Assim passaram quase toda a noite, conversando sobre a vila e sobre as pessoas iguais a eles, que estão espalhadas pelo mundo.

 

 

 

9

 

 

São Paulo. Casa dos pais de Vicky. Ele está contando aos pais que passara a noite estudando na casa de um colega de escola.

 

 

 

— Podia ter avisado. Não é, senhor Vicky?

— Desculpe-me, pai. O trabalho de escola fez com que nos concentrássemos tanto, que quando dei por mim já passava da meia-noite, assim, não achei conveniente ligar àquela hora da noite, e resolvi dormir lá.

— A Trícia estava preocupada, também.

— Telefonarei a ela, obrigado.

 

Foi à escola, mas não às aulas. Vicky precisava pensar em tudo que havia descoberto na noite anterior. Como viver a vida normalmente sabendo o que ele era? Como encarar que tinha um tempo pré-definido até viver uma outra vida? Como se preparar para a nova fase da vida?

E a Trícia? Como levar uma vida normal com ela? Como manter o namoro sabendo que um dia teria de abandoná-la? E casar então? Talvez nunca, com certeza não seria justo para ela. Ter filhos? Nem pensar. E os pais? Como explicaria que viveria em outro lugar, e que eles não poderiam nem visitar o filho?

Passou a semana pensando. Não chegou a nenhuma conclusão, porém, sabia que não havia outro jeito, tinha de viver a vida como ela se apresentava a ele.

“Este ano vou me formar engenheiro naval, no ano que vem decido no que vou trabalhar, e assim por diante, vou vivendo cada ano, cada dia”, finalizou, não com muita convicção, mas finalizou.

 

Vicky, conte-me. Como foi na livraria? — perguntou Trícia, quando se encontraram para o almoço.

— Eu não encontrei nada de anormal. Aquelas pessoas pertencem a um grupo de discussão literária. Eles se reúnem para discutirem sobre livros.

— Mas e o bombeiro do seu sonho? O enfermeiro?

— Eu me enganei, não são as pessoas com quem sonhei. Tudo não passou de um sonho... é o mais lógico.

— Estranho, ontem você não pensava assim. Você mudou muito.

— Eu preciso  levar a minha  vida  para frente. Preciso pensar na escola, em me formar. Não posso ficar a vida inteira pensando no que me aconteceu.

— Nesse ponto estou completamente de acordo.

 

No fim daquele ano, Vicky terminou o curso na faculdade, porém, o fato de não ter estagiado em uma empresa do segmento naval, ou em qualquer outra empresa, faria – segundo os colegas; segundo os professores; segundo a lógica do mercado de trabalho - com que tivesse dificuldades para arrumar um emprego na área em que se formou ou até mesmo na área de engenharia.

Ele havia dedicado todo o tempo livre, da escola, com trabalhos voluntários em creches municipais, hospitais infantis e instituições de ajuda humanitária. Foi um ano dos mais felizes, ele se sentiu útil, acrescentara valor à própria vida, ajudando pessoas que necessitavam de atenção, de amor, de carinho, de solidariedade, de companhia, de alguém... Ou seja, parecia que quanto mais ele ajudava o próximo, quem mais ganhava era ele.

No trabalho com crianças com graves doenças aprendeu que: muitas vezes o importante é passar alegria, confortá-las e até mesmo passar esperança, ainda que o caso não fosse fácil. Aprendeu que ele não tinha poder de curar as crianças, nem de evitar que algumas morressem, até quando elas, ainda, tinham pais. Aprendeu na prática que ele era simplesmente um instrumento, e que algumas vezes quando tentava salvar uma criança em estado terminal, ela falecia ainda com a mão dele sobre a testa dela. O que o levou a acreditar que por vezes a morte era a maneira de dar descanso a uma pessoa, o caminho para evitar que, mesmo, uma criança sofresse ainda mais; e que ele, nesse caso, servia de instrumento para diminuir a dor dela. Mas houve casos em que ele sentiu ter dado uma sobrevida à criança. Com as experiências aprendeu que o poder dele era limitado... O poder de salvar vidas era limitado, mas o poder de ajudar as pessoas, de confortá-las, de aliviar as dores dos enfermos era ilimitado.

 

Ano seguinte. 1983. Vicky era um engenheiro naval. Não se sentia melhor que ninguém, nem tinha motivo para tal.  Sentia-se realizado, depois de tantos anos de estudo, estava formado. Começou a trabalhar em uma empresa de autopeças, que fabricava peças para uma grande montadora de automóveis. No processo de seleção, concorreu com vários colegas, a maioria tendo no currículo alguns anos de estágio e alguns, até, falavam vários idiomas. O único sem nenhuma experiência em empresa era ele e, ainda por cima, um engenheiro naval querendo trabalhar em terra.

Mas foi o escolhido... foi aprovado após a primeira entrevista... por dois motivos: era o único candidato que fazia trabalho voluntário, e o que passava uma absoluta certeza ao entrevistador de que era sincero, sem mencionar que o era.

Entretanto, na carreira profissional, Vicky nunca chegaria sequer a um cargo de supervisão, seria sempre um engenheiro, no máximo um engenheiro sênior. Pois ele seria, sempre, o amigo de todos, sincero, honesto; não faria politicagem, não bajularia as pessoas, não seria falso com as pessoas do mesmo nível hierárquico (os pares); trataria um diretor como um igual a um faxineiro, como deve ser, dando igual importância, e respeito, aos dois. Ele daria atenção a todos os funcionários da empresa. Seria querido por todos, mas não seria o profissional adequado, o profissional com o perfil para um cargo de liderança, de supervisão, de gerência... na visão dos diretores.

Na vida amorosa, tomou uma decisão muito difícil. Ele concluiu que não podia prejudicar a vida da Trícia. Ele sabia que não poderia ficar com ela por toda a vida. Ele sabia que em alguns anos teria de deixá-la. Então, por que ficar amarrando a vida dela? Se ele a amasse, como achava que amava, teria de fazer o que era melhor para ela, não o que era cômodo para ele. Quanto mais tempo ficasse com ela, mais difícil seria para ela. Decidiu, então, terminar o namoro deles.

 

Trícia, precisamos conversar –– disse ao telefone. Marcaram de se encontrar no shopping, o próximo ao serviço dela.

 

Trícia sentiu pelo tom de voz de Vicky que o assunto não seria agradável. Aprendera, nesses anos de namoro, a conhecê-lo. Se bem que, algumas vezes não sabia, exatamente, com quem estava conversando, com quem estava andando. 

Vicky e Trícia encontraram-se no shopping. Mesmo depois de boas horas planejando o que dizer, repetindo as frases, sentiu, quando a viu, que não seria fácil. Ele havia concluído que nessas conversas o caminho menos doloroso, para ambos, é o mais objetivo, o mais frio. Então, Vicky foi direto.

 

Trícia, eu não posso mais continuar com o nosso namoro.

— Por que isso agora?

— Há algum tempo sinto que não amo você o suficiente para mantermos uma relação duradoura, uma relação mais séria. E você não merece que eu fique empatando sua vida.

— Mas eu sei esperar.

 

Quando só uma das partes deseja a separação, não é fácil, não é rápido como pensava Vicky. Quando os dois se amam, como era o caso, é muito difícil. Mas ele estava decidido, tinha a certeza de que era o melhor a fazer.

 

— Eu preciso de um tempo, de um tempo sozinho.

— Também não vou ficar me humilhando. Se isso é o que você quer, não sou eu que vou impedi-lo.

 

Trícia, mesmo sendo amorosa, sentimental e amiga, ainda que amando demais o Vicky, tinha uma personalidade forte, e, o que é muito importante, gostava muito de si mesma. Aprendeu, desde menina, com o pai, que deveria ser independente financeiramente, isto é, não depender de um homem, de um marido para viver. Assim, buscou ter uma profissão, uma vida além da vida doméstica, o que a ajudava a enfrentar as dificuldades da vida.

 

Vicky, naquela noite, chorou. Chorou como havia muito não chorava.

Trícia, naquela noite, chorou. Chorou como havia muito não chorava.

Vicky jurou não arrumar mais nenhuma namorada. Trícia seria a eterna namorada dele.

Trícia jurou esquecer Vicky. Arrumaria um outro namorado no dia seguinte.



 

10

 

 

1985. Que ano! Vicky vai desejar riscá-lo do calendário, vai desejar ter poder ilimitado sobre a vida e a morte.

 

 

 

— Feliz Ano-Novo!

— Feliz Ano-Novo!

 

Um mês após as comemorações de início do ano, a mãe de Vicky sofreu dois infartos do miocárdio. No primeiro foi socorrida a tempo pelo pai dele. Levada ao hospital, onde foi medicada, sobreviveu até o outro dia, quando teve novo ataque cardíaco.

No momento do segundo infarto, Vicky estava no quarto do hospital. Ele tentou trazê-la de volta, pondo a mão esquerda na testa da mãe, mas não conseguiu, então, apavorado, chamou os médicos; os quais tentaram salvá-la da parada cardiorrespiratória... da morte súbita, porém, também, não conseguiram.

Vicky e o pai, desanimados, desorientados, levaram três meses para realizar a perda, para sentir que a situação era sem volta. Levaram outros três meses para organizar a casa, organizar a vida sem a mãe, a base da família.

 

Em novembro o pai de Vicky foi ao banco retirar o dinheiro da aposentadoria, como fazia todo mês, desde que se aposentara, dois anos atrás.

 

— Bom dia, senhor Kyldaire — cumprimentou o caixa que o atendia em quase todas as vezes que ia ao banco, que o conhecia pelo jeito tranqüilo, um pouco mais acentuado que o usual, dos “velhinhos aposentados”, como o senhor Kyldare se intitulava.

— Bom dia, meu filho. Por favor, pague estas contas para mim; o que sobrar vou levar em dinheiro.

 

Todo mês ele pagava as contas de luz e telefone, fazia questão. E, ainda, levava dinheiro para as compras do dia-a-dia... supermercado, padaria... Vicky não conseguia demovê-lo dessa rotina, mesmo dizendo que comia mais e gastava mais energia e telefone que o pai; e, como estava ganhando bem, podia pagar as contas da casa. “Guarde para seu futuro, meu filho”, respondia o pai. “Eu trabalhei muito na vida, para ficar encostado em filho, mesmo o filho sendo você”.

 

— O senhor vai sacar todo o salário? Não vai aplicar um pouco na poupança? Para o futuro?

 

O caixa sabia a resposta. Enquanto entregava o dinheiro, o senhor Kyldare lhe respondeu:

 

— O futuro pertence a... — não conseguiu, dessa vez, terminar a frase.

 

— É UM ASSALTO! NINGUÉM SE MEXE! —bradou um homem, com um revólver na mão.

 

Naquele momento desenrolava-se um assalto na agência. Após dois homens renderem, e amarrarem os dois guardas posicionados, estrategicamente, um de cada lado da entrada, um terceiro assaltante avisou do assalto.     

Os dois primeiros ficaram vigiando a entrada e o movimento na agência, enquanto o outro pulou para trás dos balcões, obrigou os caixas a lhe entregarem o dinheiro e colocou tudo na bolsa que carregava.

Feito o saque sem nem mesmo utilizar uma folha de cheque, sem nem mesmo solicitar, antecipadamente, o saque da quantia acima do limite, voltou à área de atendimento dos caixas.

 

— O senhor aí, pode passar o dinheiro! — disse ao pai do Vicky, que estava com todo o dinheiro sacado na mão.

    

De perplexo que ficara, o senhor Kyldare esquecera de guardar o dinheiro no bolso.

 

— Tome. Pode levar — respondeu, e entregou o dinheiro.

 

Nesse momento descia, do andar superior da agência, pela escada um terceiro guarda; o qual estava voltando do banheiro. Ao perceber o assalto, deu ordem aos bandidos para se entregarem. De imediato um dos bandidos atirou na direção dele... não acertou... O guarda, que estava com a arma em punho, respondeu com um tiro, acertando um dos bandidos que tomavam conta da entrada da agência. O disparo do segurança foi seguido de vários disparos feitos pelos outros dois bandidos.

 Um dos tiros atingiu o ombro direito do guarda, que largou a arma e rolou escada abaixo. Os bandidos, em seguida, fugiram pela porta da frente da agência, carregando o dinheiro e o companheiro ferido.

Os estampidos dos tiros fizeram com que os clientes e os funcionários se deitassem no chão. Esses começaram a se levantar depois de mais de três minutos da fuga dos bandidos.

 

— Essa mulher está ferida! — gritou um cliente em um dos cantos da agência.

 

A mulher chamou a atenção, por permanecer deitada. Algumas pessoas se aproximaram... A cliente do banco estava morta. Ela fora atingida por um tiro no peito.

 

— Acudam aqui! –– gritou um dos caixas, o amigo do senhor Kyldare.

 

O senhor Kyldare estava sentado no chão. Tinha sido atingido, por um disparo, no abdômen.

Uma ambulância chegou em poucos minutos e o senhor Kyldare foi levado ao hospital, com vida.

Vicky foi avisado pelo hospital que o pai estava internado, com ferimento à bala. Deixou o trabalho, assim que desligou o telefone, e foi ao hospital. Quando chegou, o pai estava sendo operado. Tentou obter melhores informações, mas não conseguiu.

 

O senhor Kyldare, após três horas de cirurgia, foi para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva).

 

— Doutor, por favor, como está o meu pai? —Vicky foi logo perguntando ao médico que vinha de encontro, ainda a três metros de distância, no corredor.

— Seu pai vai sobreviver! Mas...

— Pode continuar doutor. Diga, por favor.

— O tiro pegou o baço em cheio e um dos rins de raspão. O baço teve de ser retirado... O seu pai deve ficar alguns dias na UTI, até ser transferido para um apartamento.

— Quando poderei vê-lo? Quando vai ter alta? Quando ele poderá ir para casa? — Vicky, que era ansioso, estava mais ansioso ainda. O que ele queria era ter o pai ao lado dele.

A volta dele para casa, vai demorar um pouco. Após a UTI, ele fará um tratamento de fisioterapia, com caminhadas diárias pelos corredores do hospital e exames clínicos diários. Só após essa fase poderemos dizer se estará pronto para ir para casa, e quando.

— Mas o que acontecerá a ele sem o baço que foi retirado?

— Apesar de o baço ser um órgão muito importante, ele não é essencial. As funções do baço passarão, com o tempo, a serem desempenhadas por outras partes do organismo. O seu pai terá um quadro de anemia, nos primeiros dias, o que é normal nesses casos... Ele se recuperará.

— E o rim?

— Por enquanto não há um quadro definitivo. Acreditamos que, com tratamento, o rim recuperará, totalmente, a capacidade de funcionamento.

 

O que havia acontecido no banco, como o pai se havia ferido, Vicky só soube no outro dia, pelo jornal, após passar a noite toda na sala de espera do hospital.

 

Vicky, após duas semanas de licença, retornou ao trabalho na empresa de autopeças e ao trabalho voluntário. O pai estava tendo uma recuperação excelente, o que deixou o filho tranqüilo para seguir a vida.

 

 No ano seguinte, Vicky conseguiu achar tempo, nos sábados, para participar de um treinamento de RCP, ressuscitação cárdio-pulmonar, ministrado na academia do corpo de bombeiros. O Pedro, o amigo bombeiro, foi quem o inscreveu no curso, nesse e em mais outros três, todos na área de salvamento.

 

 

 

11

 

 

Passaram-se dois anos. Vicky recebe um convite para trabalhar em um estaleiro. O convite é para trabalhar na área de projetos de construção de navios, para trabalhar na área em que se graduou, Engenharia Naval. E, ainda, é a segunda vez que recebe um convite dessa empresa. A primeira foi logo após ter começado a trabalhar. Mas a empresa está situada na cidade de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, ou seja, teria de morar lá... teria de sair de São Paulo.

 

 

 

— Que decisão difícil! — exclamou Vicky, olhando para a imagem dele refletida no espelho do banheiro.

  

“Gostaria de sair da empresa de autopeças para trabalhar na área de engenharia naval, mas se antes havia a Trícia, os meus pais e os trabalhos voluntários, neste momento o pai precisa de mim, ele só tem a mim. O que fazer? Buscar a realização profissional ou buscar a paz interior?”, pensou.   

Vicky recusou o convite. Sofreu com a decisão, mas o amor pelo pai falou mais alto, não podia deixá-lo nem levá-lo com ele, então, recusou, novamente, o convite.

Pelo menos a vida seguia o curso normal e faltavam três anos para a fase de luz, para a vida que ele, então, aceitava como algo bom e para a qual se preparava.

 

Era uma manhã chuvosa de setembro. Vicky levou o pai ao médico para uma consulta de retorno, após o pai se ter submetido a uma bateria de exames de análises clínicas. Exames esses solicitados na consulta da semana anterior, quando o pai, após ter começado a sofrer com dores de cabeça constantes, descobriu que estava com a pressão alta.

A primeira consulta, do dia, seria a do senhor Kyldare. “Que sorte”, pensou Vicky. “Oito em cada dez médicos não cumprem a agenda de consultas”. Conseguiu até pensar em uma piada, embora nervoso, ansioso para saber como estava o pai. “O cliente tem de ser paciente, senão o paciente não suportará ser cliente”, sorriu, com a própria piada.

 

— Está tudo bem, Vicky? — perguntou o pai, vendo o sorriso nos lábios do filho, e não tendo ouvido ninguém dizer nada.

— Sim, pai, é que me lembrei de uma piada que ouvi no serviço ontem.

 

A recepcionista pediu ao senhor Kyldare que entrasse na sala do médico, Vicky entrou junto.

 

— Bom dia! — o médico estava sorrindo, era um bom sinal, ou não, o médico podia estar somente querendo não assustar... um semblante sério indicaria uma seriedade do caso.

“Que paranóia! Não delire... o médico é uma cara sorridente, simpático e só”, pensou Vicky.

— Bom dia, doutor — respondeu o senhor Kyldare.

 

Após os exames de rotina - pressão, batimento cardíaco... tudo sob controle -, o médico analisou os resultados dos exames laboratoriais e informou:

 

— O senhor Kyldare está com uma insuficiência renal leve, ou seja, um dos rins apresenta uma diminuição da capacidade de funcionamento; e os exames clínicos apontam, também, uma leve anemia.

— Tudo isso de uma vez? Precisa operar? — perguntou Vicky.

— Não, não é o caso. Acredito que: se o nosso paciente levar o tratamento a sério, o rim pode recuperar a capacidade de funcionamento.

 

Não foi o que aconteceu, embora o pai de Vicky tenha seguido à risca as prescrições médicas e tomado os remédios nos horários certos, em janeiro do ano seguinte, novos exames de análises clínicas indicaram que o senhor Kyldare estava com insuficiência renal crônica, isso significava a perda, embora lenta, progressiva e irreversível das funções do rim. E, pior, os exames mostravam que, então, os dois rins tinham as funções renais comprometidas. E, segundo o médico, não se podia afirmar se a era, nem se não era, devido ao tiro recebido de raspão, no órgão, no assalto ao banco.

O que se podia afirmar era que o senhor Kyldare precisava começar a fazer sessões de diálise, para a eliminação das toxinas do sangue e para regular a produção de glóbulos vermelhos e a pressão sanguínea.

Vicky sentiu o chão se mover para o lado e as paredes, da sala do consultório médico, fecharem-se em torno dele; com os ouvidos a pedirem a repetição da informação, por ordem do cérebro que não queria acreditar.

As sessões de hemodiálise - filtragem das substâncias tóxicas, água e sais minerais do organismo - começaram na semana que se seguiu. Vicky, três vezes por semana, levava o pai de manhã ao hospital, ia ao trabalho, e na hora do almoço buscava o pai.  Nesses dias almoçavam a comida entregue por um restaurante que ficava perto da casa deles.

A esperança do pai era receber um rim de um doador... o do filho era incompatível; porém, a fila de pacientes que esperavam por um órgão doado era enorme.

Depois de vários meses indo ao hospital, o senhor Kyldare optou pela diálise peritoneal, infusão do líquido de diálise por meio de um catéter colocado no abdômen. A mudança foi feita porque a troca do líquido podia ser feita em casa, pelo próprio paciente ou por um familiar, porém, devia ser feita de três a seis vezes por dia. Após alguns dias, contando com a ajuda do filho, o pai passou a fazer o procedimento sozinho.

No fim do ano, Vicky cada vez mais preocupado com o pai, em casa sozinho, definhando-se; resolveu pedir demissão do emprego, continuou só com o trabalho voluntário com as crianças. O próprio Vicky, também, não era nem sombra do moço forte, de aparência saudável e praticante de vários esportes da época da escola; tinha emagrecido muito, perdido os músculos, não tinha ânimo para jogar bola nem para a natação.

Na noite de Natal, Vicky estava em casa com o pai, assistindo a um filme alugado na locadora do bairro. Quando, às nove horas, o pai adormecido na poltrona - tipo sofá, inclinável, de couro, presente do filho -, a campainha tocou... parou o filme e foi ver quem era.

 

— Trícia?! — sussurrou Vicky.

 

Vicky viu Trícia, através do olho mágico. “Seria por isso que o olho é mágico?”, pensou. O coração dele apressou-se para abrir a porta.

 

— Oi.

— Oi. Entre por favor.

— Vim fazer uma visita a seu pai... Desculpe, já é tarde, não é? — disse Trícia, ao notar que o senhor Kyldare estava dormindo.

— Não, tudo bem. Quer um chá?

— Aceito, obrigada.

 

Vicky convidou Trícia à cozinha, pôs água em uma caneca e levou ao fogo, para o chá.

 

— Como está seu pai?

— Vai levando, hoje ele passou o dia bem... Ontem nós fomos passear no shopping, após termos ido ao cemitério.

— Isso é muito bom, ele precisa sair para se distrair. Acho que ficar só em casa leva à depressão. Não ajuda em nada a recuperação do paciente.

— Notei um vaso de flores no túmulo de mamãe. As flores ainda estavam frescas... as mesmas flores que você escolhia para o túmulo de sua mãe.

 

Trícia era órfã de mãe desde os dois anos de idade, e o pai havia falecido dez anos atrás. Ela vivia com uma tia, desde então. A vida, também, não havia sido fácil para ela; o que fez dela uma pessoa forte e preparada para situações difíceis; no entanto, não a tornou uma pessoa insensível, nem fria, nem distante das pessoas... Trícia era doce, impossível não se sentir bem do lado dela.

 

— É, dei uma passada por lá.

— Eu sei, como das outras vezes. Muito obrigado por se lembrar dela.

— A sua mãe sempre me tratou como filha. Eu gostava muito dela.

 

Trícia estava com a voz embargada e Vicky sentia que começaria a chorar a qualquer instante, pois ele, com tudo o que vinha passando, estava extremamente frágil... física e emocionalmente.

Vicky notando que a emoção, ali à mesa da cozinha, estava pesada tratou de mudar de assunto.

 

— E você, Trícia, está casada?

— Não, ainda não.

 

O que Trícia não falou, foi que nunca o havia esquecido. Ela até tentou, namorou dois rapazes depois da separação dela de Vicky, porém, os namoros duraram pouco tempo, não conseguiu gostar de nenhum dos namorados... quando levada a um restaurante, pensava: “esse prato é o preferido de Vicky”; quando levada a um teatro, pensava: “essa peça não faz o gênero de Vicky”; quando levada a um shopping, pensava: “vou comprar esse relógio para o Vicky”.

Também não contou que: fazia dois anos que só se dedicava ao trabalho com crianças de um colégio da rede pública.

 

Vicky servia o chá, quando os olhares dele e dela se cruzaram. O momento, rápido, pareceu uma eternidade... olhos nos olhos, corações apaixonados batendo em sol. Ela sentiu naquele instante que ele ainda a amava... sentimento confirmado pela lágrima que escorreu na face dele. O diálogo entre eles ficou impossível.

Na despedida, Vicky chorou nos ombros de Trícia. Uma única palavra, e, ela voltaria para ele. Vicky não se permitiu que isso acontecesse, não disse nada; naquela situação, seria injusto, seria um fardo bem pesado para ela. E ele a amava demais para imputar uma vida como a dele a ela. Uma vida que nem ele sabia se poderia suportar por muito tempo.

 

— Boa noite, Trícia. Obrigado por ter vindo.

— Boa noite, dê um beijo em seu pai.

— Ele vai ficar contente de saber que você veio.

— Pena que ele está dormindo.

— Mesmo assim.

— Boa noite.

— Boa noite. Obrigado.

 

 

 

12

 

 

1989. Fevereiro. O pai de Vicky falece, após esperar pelo rim que nunca veio, após esperar pelo avião que ficou preso no aeroporto de Brasília.

 

 

 

— Meus pêsames. Coragem.

— Meus sentimentos. A vida continua.

 

Os meses que se seguiram ao falecimento do pai arrastaram-se para o Vicky. Abatido, ele quase não saia de casa; definhado, nem no trabalho voluntário aparecia; uma vez por semana fazia compras no supermercado, uma vez por dia fazia a refeição... ou almoçava ou jantava. Perdeu a vontade de viver. Esqueceu-se até de que o dia de se apresentar na vila estava se aproximando. Duvidava da vontade de Deus... de permitir que fosse o instrumento Dele. Algumas vezes duvidava até que Deus existisse. Como Deus permitiu que o pai morresse? Ainda daquela maneira. Como levou a mãe ainda com muita vida a viver? Por que não deixou que ele os salvasse? Para que ter o poder de salvar alguém, se não podia salvar os entes mais queridos? Nem a mulher que ele amava podia ter.

 

“Quem quer uma vida dessa?”, pensava Vicky.

 

Sábado de sol. Quatro meses passaram-se, da morte do senhor Kyldare. Vicky completava três dias sem tomar banho. A casa parecia um chiqueiro. Roupa de duas semanas para lavar, empilhada no canto do banheiro. Louça empilhada na máquina de lavar roupa, porque na pia da cozinha não cabia mais nada. Caixas e mais caixas, vazias, meio vazias e cheias, de comida expressa chinesa acumuladas na mesa da cozinha, na mesa da sala e na cômoda do quarto.

A casa toda às escuras, cortinas fechadas, luzes apagadas, Vicky adormecido no sofá da sala, televisão ligada, sem som. Alguém tocou a campainha. Alguém tocou a campainha. Alguém tocou a campainha. Finalmente ele ouviu. Demorou mais dois minutos para chegar à porta, distante três metros do sofá.

 

— Trícia?! — o nome escapou em um fio de voz da boca de Vicky.

 

Vicky viu Trícia, através do olho mágico. “Um anjo em minha porta, realmente o olho é mágico”, pensou. Juntou tudo o que lhe restava de forças para abrir a porta e deixá-la entrar.

 

— Estou indo para o Céu. Deus lembrou-se de mim, enviou um anjo para me buscar — balbuciou.

 

Trícia mal conseguiu entender duas ou três palavras, mal conseguiu dar dois ou três passos sem tropeçar em alguma peça de roupa, mal conseguiu respirar o ar pesado da sala antes de abrir uma janela.

 

— Vicky, o que você está fazendo com você? Olhe para isso? Como alguém pode viver assim?

— Eu estou bem, não precisa vir até aqui para dizer como devo levar a minha vida.

— Mas eu me preocupo com você. Ninguém tem visto você. No hospital, que você ia todo dia, não aparece faz meses. Você quer morrer?

— Finalmente você disse algo que tem sentido.

— Mas eu não permito!

— Quem é você para se intrometer na minha vida desse modo?

— Eu amo você!

 

Vicky ficou sem palavras, não esperava ouvir essa frase de Trícia, não depois de tanto tempo, não depois de tudo que disse a ela, não depois de meses sem falar com ela, sem nem mesmo ter telefonado. Sem palavras, mas também sem reação... nenhum sinal, apenas deu meia volta e deixou-se cair no sofá.

 

Trícia começou pela cozinha, terminou no banheiro... Passou duas horas limpando a casa, lavando louça, na pia, e algumas peças de roupa, na máquina de lavar. Depois preparou um prato de arroz, o único alimento natural não estragado, com sardinha enlatada, o único alimento processado com data de validade não vencida, que achou na casa.

Então... Obrigou o Vicky a comer. Obrigou o Vicky a tomar banho.

O verdadeiro amor é realmente poderoso. Como Trícia ainda amava aquele homem, depois de tanto tempo afastados? Como Trícia amava aquele homem, fisicamente metade do que era? Como Trícia amava aquele homem, mentalmente um sopro do que era?

Trícia amava Vicky, ela tinha certeza, amava o homem que sabia existir por trás daquele espectro que ali se apresentava, por trás daquela metade de sombra sem vontade de viver.

Trícia, após o almoço, saiu. Voltou uma hora depois, com muitos sacos de supermercado com mantimentos, produtos de limpeza... e vários pratos de comida congelada. Quando finalmente saiu para voltar para a casa dela eram dez horas da noite. Deixou Vicky dormindo. Ele parecia mais saudável, parecia que ia sobreviver, o que não se poderia dizer quando ela o encontrou.

Trícia chegou em casa, com a tia grudada no telefone ligando a todas as amigas dela, preocupada com a demora da sobrinha.

 

— Onde esteve, minha filha?

— Desculpe-me tia, eu devia ter ligado para informar onde estava... Fui até a casa do Vicky. Estava preocupada com ele.

— Como está o pobre menino?

— Ainda está mal. Eu tinha razão de estar preocupada com ele. Quando cheguei lá, encontrei um trapo de homem, não era nem lembrança do Vicky que eu conheci.

— Deus ajude o menino!

— Amanhã eu vou voltar lá.

 

Domingo  de  sol.  Nem  bem  entrou, na casa de Vicky, Trícia foi abrindo todas  as  janelas  para  o  sol  entrar. Ela foi acompanhada da tia, a qual fazia uma macarronada de fazer vizinho ficar com água na boca, só pelo cheiro. E, ele precisava se sentir parte de uma família, pelo menos era o que elas achavam. E, completamente certas que estavam, ele até sorriu, o que não fazia, não daquele jeito, espontâneo, desde que o pai tinha uma saúde perfeita. Vicky sorriu com as manias da tia de Trícia, que só usava tomates frescos para o molho, que só usava colher de pau, que experimentava o tempero pondo um pouco da comida, ainda quente, na mão e fazendo um “hummm” de dar vontade de experimentar, também... detalhes de uma vida em família, que, muitas vezes, passam despercebidos por quem a tem, e, que são, por merecimento, valorizados por quem não a tem.

 As duas fizeram o sol entrar na casa, fizeram o sol entrar no coração do Vicky.

Trícia não pôde voltar nos dias de semana, pois trabalhava até tarde e a escola ficava longe da casa dela. Para Vicky a semana seguinte foi de recuperação; o sentimento de ser amado, de alguém se preocupar com ele, fez com que voltasse a ver um lado bom na vida.

Trícia o amava, Vicky tinha, mais do que nunca, certeza. Se não, por qual motivo uma mulher que havia sido abandonada se preocuparia com um homem acabado, destruído pelos infortúnios da vida, incrédulo no sentido da vida? Saudações ao amor de Trícia por Vicky, que o fez voltar a acreditar na vida, voltar para a vida.

Vicky decidiu procurar Trícia, pediria a ela que voltasse para ele. Começaria novamente, começaria do zero o namoro... se ela ainda o quisesse, se ela o aceitasse, se ela o perdoasse.

 

Dez de julho de 1989, uma segunda-feira. O calendário jogado em um canto da casa, esquecido desde a primeira semana do ano, esquecido desde quando os dias importavam, estava limpo, sem nenhuma marca, sem nenhuma data especial evidenciada. Então, o calendário, que voltara a ser importante, indicava o tempo como inimigo, mostrava que Vicky teria menos de um ano antes da nova vida.

 

— Vou procurar a Trícia nesse sábado! — frase dita por Vicky, após horas pensando.

 

“Mas, antes, tenho de falar com o Alex”, pensou.

 

Decidiu pedir ao amigo que intercedesse a favor dele, que fosse o advogado nesta questão:

Vicky queria perder todos os poderes,

Vicky queria ser uma pessoa normal,

Pois:

Vicky queria viver o amor de Trícia.

 

Nada mais justo, visto que: quando ele mais precisou, quando estava derrotado, quando o fundo do poço parecia estar no alto, no topo de uma montanha de cem metros, Trícia foi a única... a única dentre os mortais e imortais que lhe estendeu a mão. Deus não lhe haveria de negar esse pedido, essa súplica.

Na quarta-feira, dessa semana, foi à empresa de resgate e encontrou-se com o Alex, que acabara de voltar de um chamado de emergência. Um garoto, de quatro anos de idade, tinha enfiado grãos de feijão no nariz e não estava conseguindo respirar normalmente. Foi fácil, segundo explicou o Alex, após a intervenção de um médico, no pronto-socorro do Hospital do Ipiranga, o garoto foi liberado para voltar para casa.

 

— Que bom! Você adora o seu serviço, não é, Alex?

— Sim! Vicky, eu adoro o que faço, e, principalmente, o sorriso das pessoas, dos familiares, quando tudo acaba bem; é a minha melhor recompensa. Semana passada, quando eu estava vindo ao trabalho, salvei um jovem de dezoito anos, que estava pendurado em uma ponte, após um acidente com a corda de rapel, e...

— Você nunca pensou em  se  casar, em  ter filhos. Você nunca gostou de alguém? — interrompeu Vicky.

— Sim, quando eu tinha vinte e cinco anos, quase casei. Mas descobri, a tempo, que a moça não era a minha cara metade.

— Depois dela, nenhuma outra?

— Vicky. Você e seu repertório de perguntas. Você devia ser advogado, não engenheiro. Falando nisso, soube que você saiu de seu emprego, que anda sumido.

— É uma longa história. Uma longa e triste história.

— Fiquei sabendo do seu pai. Sinto muito.

— A propósito, Alex, os seus pais são vivos?

— Sim, eles vivem em minha cidade. Estão bem de saúde. Graças a Deus!

— Graças a Deus! Mas voltemos ao nosso assunto. Então, você se apaixonou novamente?

— Quando você nos conheceu, o Pedro e eu éramos os únicos solteiros da vila. O Pedro, hoje, não mora mais lá... Faz dois anos que saiu, ele se casou no ano passado com uma antiga namorada e vive em Sapucaia do Sul, na grande Porto Alegre.

— Fico feliz em saber que o Pedro está bem. E...? — perguntou e esticou a mão espalmada na direção do Ales.

E, eu? Eu conheci uma pessoa igual a nós, ela trabalha no Rio de Janeiro.

— Interessante, como você a conheceu?

— Ela... linda... ela é linda, potiguar, tem a mesma idade que eu. Vamos nos casar no ano que vem e vamos morar em Natal. Consegui um emprego em um hospital de lá, vou trabalhar como socorrista, que é o que gosto de fazer.

Legal, Alex! Mas como você a conheceu?

— Fui levar um paciente até o Rio de Janeiro, numa greve de aeroviários, com a ponte aérea sem vôos, e a encontrei no Hospital Municipal.

— Destino!?... Conveniência.

 

— Bem, vamos lá, Vicky. Qual o motivo de tantas perguntas sobre minha vida amorosa? Por que isso agora?

— Eu me apaixonei! Apaixonei-me de verdade, pra valer! Ou melhor, nunca tinha deixado de estar apaixonado... Assim, eu quero abrir mão da vida na vila, quero viver na cidade com a minha esposa, pois pretendo me casar ainda este ano.

— Não acredito que você consiga... nunca houve um caso como esse.

— Você não pode pedir por mim? Pedir para eu voltar a ser uma pessoa normal? Ou, pelo menos, que seja permitido eu continuar vivendo na cidade, casado?

— Nós não temos um canal de comunicação, Vicky! Nós somos, simplesmente, instrumentos.

— Nem na vila?

— Não. E, você sabe, a vida na vila é importante para estarmos mentalmente bem; ela nos permite abrirmos mão de bens materiais, não nos apegarmos a dinheiro, casa, carro ou qualquer objeto de valor.

— Mas, eu não quero mais essa vida. Acho muito bonito o que vocês fazem, a missão das pessoas iguais a você, mas eu amo demais a Trícia para abrir mão dela. Não posso abrir mão de mim, sem ela a vida para mim não tem sentido. Demorei demais para perceber esse fato. Perdi vários anos de minha vida por não realizar esse fato, por não viver a minha verdade.

— Senti muito, Vicky, eu não posso fazer nada. Acredite. E, se pudesse não faria, pois acredito que você está pensando de maneira enleada, está confuso. Eu até o entendo, mas não posso concordar. Pois esta vida que você não quer, é a vida que eu viveria mil vezes, se permitido fosse; que eu viveria até os meus cem anos, se me fosse solicitado.

— Mas você não passou pelo o que eu passei.

 

— Todo mundo tem seus problemas. Ninguém pode passar por aquilo que você tem de passar... em seu lugar... nem um pai, nem uma mãe, mesmo esses que não hesitariam em sofrer no lugar de um filho, ou filha... E... você é o meu substituto. Você é a pessoa que deverá assumir o meu lugar na vila, quando eu partir. Você é o escolhido, e mais, eu nunca vi nenhuma pessoa que tenha a sua força. Você é o primeiro caso, a primeira pessoa que possui o poder de servir de instrumento antes da fase de luz.

— Então, pelo que entendi, não existe a opção de eu voltar a ser normal, sem passar por essa fase!?

— Honestamente, não sei. Acho que não, mas não posso afirmar. Afinal tudo é possível.

 

De volta em casa, Vicky pensou na conversa com o Alex, pensou no que sentia por Trícia.

Vicky manteria a decisão tomada, Trícia era o que ele mais desejava. E, concluiu:

 

“Se eu estiver casado, no próximo ano, não precisarei ir para a vila... pelo menos é a única chance disso não acontecer.”


 

13

 

 

1989. Dezembro. Trícia e Vicky marcam o casamento para o mês de fevereiro do ano seguinte.

 

 

 

— Fevereiro, é um bom mês?

— Qualquer mês é um bom mês, para reafirmar o meu amor por você!

 

Trícia e Vicky tinham reatado o namoro havia pouco mais de cinco meses. Ele voltara a trabalhar, então dava aulas em um cursinho pré-vestibular e havia recuperado parte do físico, graças às horas de natação na piscina do clube que Trícia freqüentava, aos jogos de futebol de campo com os antigos amigos da empresa em que trabalhou e, principalmente, por estar feliz.

 

Em janeiro, Trícia e Vicky fizeram os exames pré-nupciais. O resultado dos exames dela saiu antes do dele. Ela foi buscá-lo no laboratório; e de lá foi direto para a  consulta de retorno com a médica.

Vicky, que tinha combinado buscá-la, chegou ao consultório, localizado em um prédio comercial, quando ela estava na sala da médica. Aguardou na sala de espera... O lugar, cheio de pacientes e acompanhantes, estava abafado, sufocante - por falta de ventilação, por falta de ar condicionado, por excesso de pessoas para a pequena área. As conversas, entre as pessoas, sobre doenças, bons médicos, ótimos remédios, chás milagrosos – conversas usuais de sala de espera – tornavam o ambiente mais pesado, o ar quase irrespirável. Então, ele, antes do término da consulta, desceu até o hall de entrada do prédio e sentou-se em um sofá que ficava em um espaço, decorado com vasos de plantas e uma pequena fonte d’água, situado em um dos cantos do salão, do lado oposto à recepção de visitantes. O ar mais leve e a água em movimento contribuíram para que ele relaxasse.

 

Vicky, desculpe-me — o pedido de desculpas partiu de Trícia, logo que se encontrou com ele, até mesmo antes de se beijarem.

 

A expressão abatida dela, a cara de quem havia chorado, a voz carregada de tristeza...  Toda a angústia da sala de espera havia voltado.

 

— Desculpar você? Desculpar o que, meu amor?

Vicky, tenho uma péssima notícia.

Trícia, o que aconteceu? Você está com algum problema, alguma doença? — perguntou, preocupado. Naquele momento todo o drama vivido nos últimos meses o levou a pensar no pior.

— Doença, doença, não; problema, sim. Eu não posso dar filhos a você — disse com a voz embargada de tristeza; disse com entonação tal que transmitiu a idéia de que aceitaria uma negativa, por parte do noivo, na manutenção do compromisso de casamento.

— Pode ser feito algum tratamento para reverter a situação? — perguntou, mais preocupado com a decepção mostrada por Trícia do que com o fato dela não poder dar filhos a ele, de não terem os próprios filhos.

— Não, no meu caso, é irreversível... a médica deu um parecer definitivo.

— Não importa, meu amor. Podemos adotar uma criança, existe tanta criança precisando de um lar. O importante é o amor que teremos por ela, não importa se é do nosso sangue ou não — expressou esses pensamentos, naquele momento, porque sabia do desejo dela de ter filhos... de ter muitos filhos.

 

Trícia pareceu ter ficado aliviada. Embora nenhuma mulher aceite essa notícia de imediato. Pela idade, ela tinha vontade de ter filhos logo.

 

No dia seguinte, os relatórios dos exames de Vicky ficaram prontos. Nem precisou ir ao médico, para saber que tinha o mesmo problema da namorada. Estava, ainda, examinando-os, quando Trícia, que o havia acompanhado ao laboratório, preocupada com a reação dele, perguntou:

 

— Tudo bem, Vicky?

 

O namorado tinha acabado de passar por uma fase ruim, a cara feita por ele...  não era das melhores, mas também não era das piores... era enigmática. Ele simplesmente não reagiu à informação. Vicky como que soubesse, apenas recebeu a notícia.

 

— Sim, com minha saúde. Mas, como eu previa, também não sou fértil, não posso fazer filhos.

— É, de fato, fomos feitos um para o outro — disse Trícia, em um tom apropriado, notadamente querendo animá-lo.

 

O amor dos dois, cada dia ficava mais forte, cada dia mais bonito, cada dia confirmava o amor do dia anterior, tinham, realmente, sido feitos um para outro. Então eram, também, cúmplices, os dois não podiam ter filhos...

 

— Que dupla!... Perfeita até na imperfeição! — diziam um ao outro.

 

Com o dia do casamento colhendo flores, e eles preparando a casa de Vicky, para onde Trícia se mudaria após o casamento, aconteceu mais um imprevisto, o qual fez com que adiassem o casamento por um mês. A tia dela faleceu - morte natural, segundo os médicos -, três dias antes do casamento deles.

Não havia clima para manter a data do casamento, uma vez que a tia era como uma mãe para Trícia, então, o casamento foi remarcado para março.

 

No sábado seguinte, no dia em que seria realizado o casamento, em fevereiro, Vicky foi à padaria da esquina próxima da casa dele, como fazia toda manhã de férias escolares. Quando estava chegando, notou um alvoroço de pessoas. Algo havia acontecido, e não era bom. Apressou os passos...

Um pai desesperado. Um menino deitado no chão, perto do caixa... Foi a cena que Vicky viu, assim que entrou na padaria.

 

— O que aconteceu? — perguntou a um dos atendentes de balcão.

— Um chiclete, daqueles com um líquido dentro, estourou na garganta do menino.

 

O pai tinha acabado de comprar o chiclete - com receio líquido envolto com goma - e dado ao filho, que imediatamente, após tirar o papel, pôs na boca e mordeu. A mistura pegajosa do líquido com a goma mascada - em grande quantidade para uma criança de cinco anos -  fechou a garganta dele. O pai tentou de tudo para tirar o chiclete, para desobstruir a garganta do filho, mas não conseguiu. Uma outra pessoa tentou ajudar e também não conseguiu. O menino mudou de cor e, então, apresentava ausência de pulso e de movimentos respiratórios.

 

— Meu filho está morto! Por favor, me ajudem! Deus não permita que meu filho morra, que me leve no lugar dele!

 

O desespero daquele pai cortava o coração de todos, mulheres, e homens, com lágrimas incontidas. A cena chocava o mais frio dos homens, as pessoas nem conseguiam olhar para a criança. O pai saiu correndo para fora em busca de alguma luz, alguma ajuda, algum milagre. Vicky aproximou-se do menino...

No momento em que Vicky abaixou-se na direção da criança ninguém estava olhando. Vicky, instintivamente, pôs a mão esquerda na testa da criança e dois dedos da mão direita na boca dela. Sentiu, pela segunda vez, a energia confortante e viu a luz sobre eles. O chiclete saiu nos dedos dele. A criança tossiu fortemente, um pouco de líquido, vermelho, voou no rosto de Vicky. A criança começou a chorar, sentiu que algo ruim se tinha passado. As pessoas que voltaram os rostos para a cena, quando ouviram o som da tosse, vendo a criança chorando, vendo Vicky, também, com lágrimas correndo dos olhos avermelhados, choraram. O pai, chamado por alguém, chorava mais que todos, então, abraçado ao filho. Só o largou para agradecer ao Vicky.

 

— Meu senhor, muito obrigado, Deus lhe pague — o pai ajoelhado na frente do Vicky, segurando as pernas dele, agradecia e chorava.

 

Vicky estendeu os braços, segurou o homem e levantou-o.

 

— Muito obrigado. Não sei o que fazer para lhe pagar. Nada paga o que você fez. Sou seu devedor para toda a vida. O que você precisar de mim, pode pedir — disse o pai, que beijava as mãos do Vicky, enquanto o filho bebia um copo de água com açúcar.

 

Vicky saiu da padaria aplaudido, levando meia dúzia de pães, que não conseguiu pagar. O dono da padaria não deixou, mesmo com a insistência de Vicky.

 

 

 

14

 

 

O pão cortado ao meio, margarina espalhada nas duas metades. O leite, quente, misturado com pó de cappuccino. Vicky preparou o tradicional café-da-manhã  que tanto aprecia, mas não está comendo o pão, não está bebendo o leite, olha para os alimentos sobre a mesa, mas não os vê, ele está longe.  Sentado à mesa, pensa... pensa no que tinha acabado de acontecer na padaria, pensa na criança chorando, pensa na felicidade extremada do pai. Descobre, pela segunda vez, como é gratificante salvar uma criança, salvar uma vida, como é recompensador servir de instrumento. Mas... “Como abrir mão da minha felicidade com a Trícia? Como desistir de um grande amor? Como viver longe da Trícia?

 

 

 

— E se ela aceitar me esperar dez anos? — perguntou à imagem dele refletida no vidro da porta do fogão.

 

“Mas ela já me esperou tanto”, pensou.

 “E se eu casar, me tornar um deles, mas não for morar na vila?

“Não me será permitido. Não poderei continuar morando na cidade, acredito no Alex.”

 

Ele compreendia a grandeza de ser um instrumento da vontade divina; amava o trabalho de voluntário, confortando os necessitados, os doentes, as crianças desamparadas pelos pais, as pessoas desprovidas de esperança; mas amava demais a Trícia; ela fizera tanto por ele, ela provara o amor incondicional a ele. E não era por gratidão que queria casar, que queria viver com ela; era porque ele precisava dela, ele a queria como companheira, a queria como mulher... Uma certeza ele tinha, não conseguiria viver sem a Trícia.

Mas... para uma relação dar certo, para um casamento ser duradouro... a verdade é fundamental. Vicky sabia que teria de contar tudo a Trícia, o que aconteceu, as inseguranças, as certezas, os desejos antagônicos: queria ficar com ela e queria continuar a ser um instrumento, viver a fase de luz.

 

Vicky encontrou-se com Trícia para o almoço. Foram a um restaurante vegetariano. Conversaram mais do que comeram. Ele falou por uns bons minutos, ela ouviu sem abrir a boca.

 

— Por favor, diga alguma coisa?

— Você quer dizer que: o que procuramos juntos, antes de nos separarmos, o bombeiro, o enfermeiro e a livraria; tudo é de verdade, nada era imaginação?

— Sim. A vila dos meus sonhos existe. As pessoas dos meus sonhos existem.

— E você pode salvar vidas?

— Sim. Posso salvar... filhos. Como o que aconteceu na padaria.

— E você se separou de mim por conta disso?

— É a mais pura das verdades, só por isso. Eu nunca deixei de amar você.

— Mas mentiu a mim. Escondeu de mim a verdade. Não me deixou escolher o que eu queria. Não deixou que eu decidisse o meu caminho. Você decidiu por mim.

— O que eu mais queria, e quero, é que você seja feliz. Eu só serei feliz se você for feliz.

— Mas não me contou a verdade.

— Porque eu não podia. Eu não tinha permissão.

— Está me contando agora. O que mudou?

— Porque nesses últimos meses, depois de nos reencontrarmos, eu descobri a minha verdade: eu não posso viver sem você! E não posso viver nesta angústia, escondendo de você o que eu sou, escondendo que estou designado a viver dez anos servindo de instrumento.

— Está difícil de entender, nem sei se acredito em tudo que está dizendo. Eu sei que: deve ter sido difícil para você passar por tudo o que passou, sendo o que você diz ser. A morte de sua mãe, o sofrimento de seu pai, culminando com a morte dele. Abrir mão da profissão que você escolheu.

— Hoje, graças a você, consigo seguir em frente.

Vicky, você sabe quanto eu amo você. Mas... eu preciso pensar, eu preciso de um tempo. Um tempo para absorver tudo isso, e ver se ainda quero me casar.

 

As horas arrastam-se quando se espera uma resposta. Os dias são intermináveis quando se deseja uma resposta. Um mês passou-se, mais alguns dias passaram-se, até o telefonema de Trícia marcando um encontro.

 

— Sim!

 

A resposta de Trícia foi positiva, ela decidiu se casar com Vicky, mesmo correndo o risco de ter de se separar dele por dez anos. Afinal, pensou ela, o que são mais dez anos para quem esperou tanto. E pelo que concluíram, eles poderiam se ver durante o dia. Pelo menos poderiam almoçar juntos.

A nova, e definitiva, esperavam, data do casamento estava marcada.

 

“Os noivos Trícia e Vicky convidam parentes e amigos para o enlace matrimonial a realizar-se às dezesseis horas do dia quatorze de abril de mil novecentos e noventa, na Igreja Nossa Senhora Aparecida.”

 

 

 

15

 

 

“Eu sou instrumento de Deus, estou aqui para consagrar o casamento de dois filhos de Deus e abençoar esta união. Eu os declaro: marido e mulher. O que Deus uniu, o homem não separa. Pode beijar a noiva.”

 

 

 

Vão em paz. E que Deus os acompanhe!

 

O padre encerrava a cerimônia. Trícia e Vicky estavam casados. Após uma recepção simples, foram viajar, de carro, para a lua de mel. Seriam três dias em uma pousada na Serra da Mantiqueira e o restante da lua de mel passariam no litoral norte de São Paulo. Voltariam no domingo, dia vinte e dois; no sábado, comemorariam, na praia, o aniversário dele, trinta e três anos de idade.

Os dias na serra foram perfeitos. Banhos de cachoeira, visita ao Parque Nacional de Itatiaia, queijo e vinho degustados ao pé da lareira, caminhada pela Mata Atlântica, sono chegando ao som da água batendo nas pedras, visita ao Pico das Agulhas Negras.

O dia ensolarado permitia os passeios; à noite a temperatura caia, mas a lareira, o calor dos corpos, sempre juntinhos, aqueciam os amantes; o ambiente conspirava com o clima de romance do casal. A tranqüilidade do local ajudava a esquecer as agitações do dia-a-dia, a correria da cidade grande.

A temperatura aumentou, e muito, na segunda parte da lua de mel. Banho de mar, caipirinha na praia, banho de piscina, cerveja no bar da piscina, bronzeado ao sol da manhã, banheira com hidromassagem no fim da tarde, refeições leves a base de peixe e camarão. Vida de rei e de rainha, mas dormir, amar, só com o ar-condicionado do quarto ligado no máximo.

 

Sábado. Vinte e um de abril. O melhor dia de aniversário do Vicky. Sol redondo, surfe com ondas perfeitas, banho de piscina refrescante, almoço com moqueca de robalo e cerveja; jogo de tênis, banho com hidromassagem, jantar com massa e vinho branco; e... o principal... a companhia da mulher mais bonita do mundo, da mais perfeita das mulheres, a esposa amada... Trícia.

Vicky e Trícia esqueceram-se do mundo. Aproveitaram até o último minuto os dias de serra e mar. Mas o domingo chegou, segunda-feira tinha trabalho esperando, compromissos esperando, contas a pagar esperando. Mas não seria como antes, seria diferente, tudo ficaria mais fácil, tinham combinado, a partir de então eram em dois para dividir os problemas, para compartilhar as alegrias.

 

Domingo. Vinte e dois de Abril. Estavam tristes, tinham de voltar para São Paulo. Após o almoço, fizeram as malas e pagaram as despesas extras do hotel, as diárias haviam sido pagas antecipadamente.

 

— Bem, pelo menos está chovendo — disse Trícia.

 

Vicky sorriu. Entendeu o que ela queria dizer... o sol estava encoberto por pesadas nuvens, não poderiam aproveitar a praia, e, também, Trícia estava... bem, a lua-de-mel estava encoberta.

 

— Nós voltaremos muitas outras vezes.

 

Deixaram o litoral. Para subir a Serra do Mar optaram, ao invés da Rodovia dos Tamoios, pela Rodovia Oswaldo Cruz, mais curta, porém, sinuosa - perigoso caminho pela serra de Taubaté. Chovia bastante nesse trecho, Vicky dirigiu bem devagar, com muita cautela. Assim a viagem até Taubaté, até alcançarem a Rodovia Dutra, demorou mais do que o normal. Quando passaram por Taubaté, não chovia tanto, mas pelas poças de água na estrada, havia chovido muito.

A rodovia permitia uma velocidade maior que a desenvolvida no trecho de serra. Vicky acelerou o carro, mas dentro do permitido, para chegarem ainda com a luz do dia a São Paulo.

Quando tinham percorrido pouco mais de setenta quilômetros na Via Dutra, o carro passou sobre uma lâmina de água formada na pista, o que causou o efeito de aquaplanagem; os pneus perderam o contato com o solo e o carro perdeu a dirigibilidade; Vicky perdeu o controle do veículo e tornou-se passageiro. O carro escapou da estrada, descendo por uma rampa de cinco metros. O cinto de segurança de Trícia rompeu-se, ela foi jogada para fora, pela janela, que estava aberta; o carro capotou, girou sobre si uma... duas... três... quatro vezes, com Vicky dentro... o carro ficou totalmente destruído, mas o cinto de segurança suportou...

Vicky não sofreu nenhum arranhão. Ele demorou um minuto para tomar consciência do que tinha acontecido. Olhou para o banco de passageiro, procurando por Trícia... não a viu; apavorado, saiu do carro... localizou a Trícia estendida na grama, logo após a rampa da estrada, a quarenta metros de onde o carro havia parado. Demorou mais um minuto para chegar até ela e descobrir que não respirava, que não apresentava nenhum sinal de vida.

 

Nesse momento, ele realizou que estava salvo porque tinha completado trinta e três anos, estando, portanto, imune de qualquer mal que lhe pudesse ocorrer.

          

— Por que meu Deus? Por quê?! — gritava Vicky.

   

Ninguém podia ouvir, estavam somente os dois ali. O acidente não havia sido testemunhado por nenhuma pessoa.

 

— Por que me castigou? — gritou.

— Eu sou o culpado, deveria ter ido para a vila — murmurou, chorou.

— Como acreditar que Deus existe?

 

No terceiro minuto, recordou-se:

 

Da primeira vez em que a viu, dançando na balada;

Do calor sentido, quando se tocaram pela primeira vez, no estacionamento da Faculdade de Física;

Do primeiro beijo e da sensação de serem uma única pessoa;

Da visão de Trícia no olho mágico, trazendo um alento em um momento triste;

De Trícia devolvendo o sol para dentro da casa dele, para dentro da alma dele, após o pai ter falecido;

Das palavras do padre, o qual serviu de instrumento de Deus para abençoar a união deles: “O que Deus uniu, o homem não separa”.

 

“O calor intenso quando nos tocamos pela primeira vez... as palavras do padre... o que Deus uniu...”, pensou, repetiu em voz baixa.

 

— Será? — indagou Vicky, a si mesmo.

— Será?!

 

Quase quatro minutos tinham se passado desde que Trícia fora jogada ao chão, sem vida. Vicky não pensou mais, pôs a mão esquerda na testa dela.

 

Vicky sentiu a energia... dessa vez duplamente confortante; Vicky viu a luz... dessa vez duplamente mais forte.

 

Vicky?! Vicky, você está bem? — Trícia abriu os olhos, com ele ainda debruçado sobre ela.

— Graças ao bom Deus! Graças ao bom Deus! Graças ao bom Deus!

 

Trícia sentiu que estava molhada... sentiu água batendo nas costas, parecia uma onda... “onda do mar na Rodovia Dutra?”, pensou.

 

— Onde estou? — perguntou, assustada; então, sentada. — Como vim parar nesta praia? Estamos no Céu? Morremos no acidente?

— Calma, não estamos no Céu. Estamos vivos!

— Mas... estamos em uma praia!?

— Sim, esta é a praia dos meus sonhos! Estamos na vila!

— Então...

— Sim! Você é como eu!

 

— Você é um Espírito Santo!

 

 

 

Muito Obrigado,

 

luca mac doiss, 2006 ... nasceu da imaginação de um engenheiro, com especialização em administração; com trabalhos publicados nas áreas de qualidade e planejamento estratégico.

 

Livros publicados: “Alma de Criança” – Romance ; “Mãe, eu cresci!” – Infanto-Juvenil.

Livros que vem por aí: “O Coletor de Desejos” – Romance Adulto e “Aborígines” – Romance Épico.